Tornou-se frequente denominar de fracturantes determinados temas que levantam maior volume de polémica na sociedade, questionam determinadas atitudes e comportamentos, põem em causa valores tidos, até há pouco, como indiscutíveis para amplos sectores da opinião pública considerada mais consistente e ambicionam a alteração substancial de alguns códigos.
Têm o condão da transversalidade entre partidos políticos, escolas, organizações sociais, países e, quiçá, religiões. A título de exemplo, podem apontar-se as questões do aborto, da eutanásia, do casamento entre pessoas de sexo igual e, entre nós, as da regionalização. Todas elas, porque atravessam partidos e grupos, da esquerda à direita, mandam-se para referendo, na convicção de que os programas eleitorais não são suficientemente claros e os eleitores, quando votam, não terão em conta essas matérias.
Alegando que algumas, como o aborto e a eutanásia, são questões de consciência, tentam retirá-las da alçada dos políticos que representam a nação e entendem que é o povo que deve pronunciar-se directamente sobre a opção legislativa, embora sem carácter vinculativo.
Quanto à problemática da regionalização, embora se enalteçam as suas vantagens, apesar da pequena dimensão do luso continente, reconhece-se a dificuldade em sair do esquema desenhado pelo Liberalismo, bem como a tendência do poder central em propalar transferência de poderes e competências, mas continuar a tudo regulamentar até ao ínfimo pormenor. Por outro lado, teme-se que a extensão das competências agora nas mãos dos municípios ao âmbito regional implique, em maior escala, comportamentos marcados não raras vezes de nepotismo e compadrio, larvados da mais genuína regularidade inerente ao concurso público. E o argumento de que as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (que poderiam ser as plataformas de preparação para o estabelecimento das regiões administrativas em concreto!) não têm poder, porque os seus titulares não são eleitos, perde consistência, quando se sabe que a fonte do poder não está em exclusivo na eleição e que o grande temor dos dois partidos do arco do poder é o de que, num esquema livre de eleição regional, o Alentejo seria liderado pela CDU.
No atinente à problemática do casamento entre pessoas de sexo igual, o discurso conhecido presta-se a equívocos vários. Não se pode confundir a obrigação do respeito pela orientação sexual de cada um (e pela sua pretensão de vivência e convivência) com a ambição da criação de situações de excepção, como aconteceu quando a Câmara de Lisboa forneceu instalações para a sede de uma associação de gays (pergunta-se se o faz para outras associações que lho solicitem). Nem se pode inferir dessa obrigação de respeito e de não discriminação social a legitimidade do casamento enquanto instrumento fundacional da instituição familiar, argumentando abusivamente com o artigo 13.º da Constituição e exigindo a alteração intempestiva do artigo 1577.º do Código Civil. A proibição da discriminação atinge a diferenciação com base em condições meramente subjectivas, implica a igualdade básica de participação na vida política, com a possibilidade de acesso aos cargos públicos e funções políticas, e assegura a igualdade de base económica, social e cultural. Por mais que se fale de novos contextos familiares (família monoparental, união de facto, filhos nascidos extra união matrimonial, etc.) e do dever do Estado de a todos respeitar e integrar no quadro das suas obrigações de apoio e regulação, não se podem olvidar todas as finalidades do casamento, privilegiando esta ou aquela em detrimento das outras (a possibilidade da procriação é só uma e não exclusiva do ponto de vista biológico!), nem tampouco se pode reduzir a família à sua dimensão matrimonializada. No entanto, há que reconhecer que, numa sociedade estabilizada, as situações excepcionais, se bem que mereçam os mesmo tratamento das situações por todos reconhecidas como generalizadas, não têm que, à partida, decorrer dos mesmos pressupostos institucionais. Talvez uma leitura mais atenta do artigos 36.º, 67.º e 68.º da CRP (família, casamento e filiação) faça bem a muitos espíritos!
Demais, aqueles outros itens que alguns crêem ser do âmbito da consciência individual, usualmente aparecem em cima da mesa como matéria política. E com razão, já que, além da perspectiva pessoal, implicam questões de natureza colectiva, como a malha populacional a haver ou não haver (caso do aborto) ou a já não haver (caso da eutanásia), exprimem a colisão de direitos (direito à vida do nascituro, direito ao conforto da antemamã), direito à vida contraditório (direito à vida enquanto vida, direito à vida em condições de dignidade humana, direito ao conforto do lado da comunidade). Mas eles envolvem parâmetros científicos, nem sempre concludentes e, por vezes, vendáveis a posições ideológicas. E, sobretudo, eles patenteiam uma complexa dimensão ética. E é aqui que entra a consciência de cada um, mas formada com base no conhecimento disponível e actuante, à luz da liberdade de decisão pessoal, com o apoio da orientação de quem honestamente esteja capacitado para uma orientação de cunho holístico e humanista.
Em qualquer caso, já que a sociedade está profundamente fracturada, cabe ao poder político assumir o ónus de legislar sobre toda a temática dita fracturante, tendo em conta todo o conhecimento científico disponível e a disponibilizar e as diversas dimensões ético-políticas. Se não se tratasse de matéria política ou se como tal não fosse encarada, o Estado não poderia legislar sobre ela.
E cabe ao Estado, através dos seus órgãos de poder e de administração, organizar o acompanhamento pedagógico para que as pessoas, em concreto, decidam com toda a liberdade a lucidez possível. Não podem os poderes públicos relegar estas matérias para referendo ou deixar que as fracturas sociais se tornem mais expostas e dolorosas.
Louro de Carvalho (enviado por email)
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