1 - Terminou em Roma, no último Domingo do mês de Outubro, dia 26, a 12ª assembleia ordinária do Sínodo dos Bispos, dedicada a “A Palavra de Deus na vida e missão da Igreja”. Do trabalho realizado na aula sinodal durante três semanas, foram apresentadas ao Papa 55 propostas para ele elaborar um documento pastoral definitivo. Na redacção dessas propostas, o Arcebispo Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, em linguagem de bom comunicador, clara e sintética, recorreu a imagens humanas e belas, falando de «a voz da Palavra de Deus, o rosto da Palavra, a casa da Palavra e as estradas da Palavra».
Dessa síntese faz-se um breve comentário, repetindo algo do que em textos anteriores aqui se foi dizendo.
2 - Quando se fala da «Palavra de Deus», referimo-nos a um mundo mais vasto que a Bíblia que é somente a Palavra escrita. E a pergunta radical que se faz é saber quando e como é que Deus falou? É o chamado problema da «Revelação», uma questão anterior à da análise da Bíblia.
A resposta é que Deus falou, em primeiro lugar, pela criação do mundo, como lembrou S. Paulo aos Romanos (1,19-20). O universo é «obra de Deus», e, nessa condição, reveladora da sabedoria divina, tal como acontece com qualquer obra de arte que, antes de ser objecto de rendimentos e de negócio, é reveladora do génio do artista criador. O mundo criado é, pois, a primeira voz de Deus, uma voz não audível mas «escrita com muitas cores» (S.Efrém) na tela do universo: «pela sua palavra Deus criou os céus, e, por isso, os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos». A partir do Renascimento, o universo deixa de ser chamado «criação» e passa a designar-se «Natureza», donde tudo nasce e fonte de rendimento económico para o homem (água, minérios, madeira, força motriz, terra arável, caça, flores, fruta, cereais, animais marítimos e terrestres). Essa mudança de linguagem é o sinal da mudança de mentalidade que iria desaguar no laicismo moderno (R.Guardini).
A outra voz de Deus é o conjunto das tradições religiosas dos antigos hebreus, um minúsculo povo do Médio Oriente, a viver um rigoroso monoteísmo transcendente num espaço onde tinha vigorado um sedutor culto sensual como era o cananeu e rodeado de povos politeístas. Todos os historiadores das religiões e das culturas antigas são unânimes em reconhecer o facto insólito dessa cultura monoteísta do Médio Oriente, não se vislumbrando para essa originalidade uma explicação humana plausível: nem a terra original de Abraão, vindo da Caldeia, nem o Egipto onde cresceu o povo hebreu e donde partiu para Canaã, nem as tribos locais aí residentes, nem os povos vizinhos conheciam o monoteísmo vigoroso presente na tradição dos hebreus. Essa tradição religiosa dos hebreus seria mais tarde passada a escrito.
Essas duas realidades – a Criação e as tradições religiosas dos antigos hebreus – são a voz original de Deus.
3 - Mais tarde, o próprio Verbo de Deus, que já estava presente na Criação, viria em pessoa ao mundo, fazendo-se homem verdadeiro e vivendo no seio desse minúsculo povo de Israel: «o Verbo fez-se carne e habitou entre nós» (Jo 1). Desde modo, «a palavra criadora» adquire um rosto humano, histórico e visível. «Cristo é a imagem de Deus invisível», escreve Paulo aos Colossenses (1,23), e toda a revelação anterior converge para Jesus Cristo, atingindo aí a plenitude da revelação. Compreende-se a profundidade de S. Agostinho ao dizer que «o Velho Testamento anuncia veladamente o que o Novo dirá de modo claro», pelo que a Bíblia deve ser lida a partir do Novo. E S. Jerónimo, o homem que traduziu a Bíblia hebraica para latim, dirá com igual rigor que «ignorar a Sagrada Escritura é, na prática, ignorar Jesus Cristo» pois é Ele quem fala em toda a Bíblia. Rigorosamente, a Bíblia pretende ajudar o leitor a estabelecer com Jesus Cristo e, através de Jesus Cristo, com o Pai, uma relação afectiva e vital, levar à oração.
Paulo chama à Igreja «coluna e fundamento da verdade (1Tim 3,15), e nela está a doutrina a partir da qual se deve rejeitar outras doutrina (1Tim 1,3-6,3-4.20-21). A guarda dessa Palavra e a missão oficial de a levar ao mundo foi confiada por Jesus à comunidade dos seus seguidores, mormente aos Pastores da Igreja: «quem vos ouve a Mim ouve, e quem vos despreza a Mim despreza» (Lc 10,16), evitando discussões inúteis e escolhendo pessoas capazes de a transmitir (2 Tim 1,13-14; 2,2.16-17;3,14-16; 4,1-5).
O correcto entendimento da Palavra faz-se no interior dessa comunidade dos seguidores de Jesus, e, por isso, no final do Sínodo, Bento XVI lembrou que o trabalho científico dos estudiosos sobre as circunstâncias histórias e geográficas da redacção dos textos é necessário mas insuficiente, requerendo-se também a escuta da Tradição viva no interior da Igreja, pois tanto o texto escrito como a Tradição viva da Igreja nasceram da fé do Povo de Deus e destinam-se a servir a fé desse Povo. Fora dessa «Casa da Palavra» o texto escrito estiola e degenera. A Igreja é, portanto, a casa da Palavra, como escreveu S. Pedro (2 Ped 3,1-2; 3,15-16).
Finalmente, a Palavra deve ser difundida no mundo presente e futuro, pois «a Palavra de Deus não está algemada» (2Tim 2,9). Para isso, há que percorrer as estradas da Palavra: as estradas clássicas que Paulo percorreu – vias terrestres e marítimas, trabalho de grupos e de multidões, em ambientes afectos e meios hostis, a estrada da oralidade, dos contactos individuais e dos textos escritos; e as estradas modernas da tecnologia contemporânea - rádio, televisão, cinemas, informática e Internet.
4 - Chegados aqui, interrogue--se o leitor sobre o entendimento da Igreja como «Casa da Palavra»:
A Bíblia é assumida como um «livro da comunidade cristã», ou como «um livro religioso do mundo», um livro órfão de pai e mãe, onde cada um vai buscar o que deseja?
Entende-se que a Bíblia é somente a «Palavra de Deus escrita», havendo, além dela, a «a Tradição viva da Igreja», e que esses dois rios da Palavra correm na «casa da Igreja»? Compreende-se a razão profunda por que uma edição da Bíblia feita unicamente com o texto escrito, sem quaisquer notas sobre a ligação dos textos e o sentido dos mesmos, deixando tudo ao critério do leitor, é uma falsa autonomia da Bíblia, geradora de dúvidas e confusão? A própria Bíblia lembra que o texto precisa de ser explicado e que nenhuma profecia é de interpretação particular (Act 8, 28-35; 2Ped 1,19-21; 2,1-3).
No mundo escolar, na linguagem corrente e nos meios de comunicação social fala-se do Universo como «natureza» ou também como «criação»? Compreende-se o alcance do «Cântico das criaturas» de S. Francisco de Assis, que não é somente um texto poético mas a afirmação do universo como «revelação»?
D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real
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