Este tempo sofre muitas desgraças, na guerra, ambiente, saúde, etc. Mas a maior de todas é acreditar nos contos de fadas. Essas lendas infantis são muito antigas e sucessivas gerações as narraram, mas todas sempre souberam que se tratava de fantasia. Este é a primeira época que realmente acredita nelas, criando terríveis efeitos sociais.
Os contos de fadas têm muitas personagens fictícias, mas as mais incríveis são... o príncipe e a princesa. São incríveis, porque aquilo que fazem no conto é sempre casar e viver felizes para sempre. Ora toda a gente que está casada sabe que não se consegue viver feliz para sempre. Esse desejo é, aliás, o maior obstáculo à construção da verdadeira felicidade. Os casais bem sucedidos, aqueles que se amam para sempre, não são sempre felizes. Vivem no meio de alegria e comunhão, mas também de ocasionais dúvidas e zangas, bastantes sofrimentos e desilusões. Amam-se sempre, mas muitas vezes com alguma infelicidade. Neste mundo nenhum ser humano consegue ser feliz para sempre, sobretudo a dois.
Dizer isto hoje é a suprema heresia, pois, com fé inabalável na televisão, este tempo acredita piamente nesse aspecto central dos contos de fadas. Os jovens hoje, livres de fazer o que quiserem, sentem direito a felicidade principesca. Passado o fogo inicial, perante o menor problema, obstáculo, desentendimento, concluem que se enganaram. Se não conseguem ser sempre felizes, então este não é o prometido parceiro encantado. Desfazem a união partindo esperançados para outra.
Os tempos antigos sabiam tudo sobre namoro, amor, paixão. Mas também sabiam que casamento era mais que contos de fadas. Casamento era família, futuro, estatuto, estabilidade. Construir um amor a dois, estabelecer uma casa, assegurar uma herança, perpetuar e educar uma prole dá muito trabalho. São coisas demasiado importantes para serem deixadas a fantasias. Havia muitos casais felizes, mas muitos mais casais sólidos. Nesses tempos um casamento não era um contrato que as partes podiam denunciar. Era um casamento.
A solução antiga estava longe de ser perfeita, gerando infidelidades, frustrações, recriminações. Mas evitava o descalabro actual. Porque a nossa crença nos contos de fadas criou um caos social de primeira grandeza. E, pateticamente, não reduziu as infidelidades, frustrações e recriminações. Só as tornou banais. Procuramos escondê-lo para podermos manter a fé nos sonhos, mas essa fé trouxe a desarticulação da família, com consequências sociais devastadoras.
A família é a célula-base da sociedade. Antigamente nunca se dizia isto, porque se vivia isto. Os princípios só são enunciados ao deixarem de ser respeitados. Quando a finalidade central deixou de ser a família para ser o conto de fadas, surgiu a desgraça do século. Chamamos "novos tipos de famílias" aos estilhaços resultantes dessa desgraça. O casamento passou a ser uma relação mais fluída que o vínculo laboral. Os casais habituaram-se a desligar a sua vida real do momentâneo sonho idílico. As crianças passaram a viver órfãs com pais vivos ou, pior, com demasiados pais.
O mais terrível é que a fé nos contos de fadas, além de minar os fundamentos da sociedade ocidental, não trouxe mais felicidade. Trouxe vidas decepadas, estraçalhadas, remendadas. Adultos desenganados, cínicos, apáticos, ou viciados, tacanhos, corruptos. Idosos desamparados, solitários, tristes. Nem a evidência da explosão da depressão, droga, crime e suicídio, apesar da prosperidade, nos fazem perceber que há algo de muito errado na nossa opção.
Há mais liberdade, mas não se vêem hoje mais pessoas felizes, mesmo que seja só por algum tempo. Há mais embriaguez, sofisticação, reinvindicações, mas não mais felicidade. Antes, sem poder escolher, muitos aprendiam a ser felizes com o que tinham. Hoje, sonhando com o impossível, tantos sacrificam a felicidade realizável por sonhos enganadores. Não espanta que o tempo que acredita nos contos de fadas tenha sido aquele que criou um novo tipo de novela: o filme de terror.
João César das Neves, professor universitário
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