quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O filho do "hereje"

Contou-me uma vida marcada por confrontos e pela persistência. Sobretudo uma fé inabalável em Deus que resistiu a várias intempéries.
Filho de uma mãe assumidamente cristã e de um pai descrente e sempre pronto para umas alfinetadas na Igreja, sem contudo o proibir de participar, viveu tempos difíceis na catequese. Por um lado, era irrequieto e questionante, sem ser mal educado; por outro, sendo filho de quem era, ouvia muitas vezes, ora dito em surdina ora em voz bem timbrada: "Filho de burro não pode ser cavalo." Tanto o magoavam as canadas que levava pela sua irrequietude como as palavras que lhe chagavam a alma. Nunca desistiu. Fez as "comunhões" e o Crisma.
Nada contando ao pai para não o acirrar ainda mais, desabafava com a mãe que o acolhia, acarinhava e entusiasmava. Enquanto esperavam que o pai chegasse para o jantar, costumavam ler os dois um texto da Bíblia cuja mensagem reflectiam e partilhavam.
Nasceu aqui o seu amor pela Palavra de Deus. Tantas vezes que na catequese lhe chamaram "protestante" por levantar questões sobre a Bíblia!
Foi crescendo e descobriu que as relações entre o pai e o pároco eram de "cortar à faca". O pároco negava-se a fazer a visita pascal em sua casa, porque o pai se negava a pagar a côngrua. Resultado; o pai dizia as últimas daquele padre, de todos os padres, da Igreja; o pároco olhava-o de soslaio por ser filho de quem era.
Adolescente e jovem, nunca deixou de frequentar e de querer participar. Várias vezes se ofereceu para ler uma leitura na Eucaristia, mas nunca foi aceite, pois o senhor abade dizia que seria um escândalo para toda a gente que o filho de tal "herege" aparecesse ali, a ler...
"Mas eu não ia à missa por causa do padre ou por causa das pessoas que me olhavam de lado. Ia por causa da minha fé. Sabia que Deus era fundamental na minha vida e não podia consentir que algo ou alguém me afastasse d'Ele".
Casou, emigrou. Encontrou outro ambiente, outra abertura e acolheram-no plenamente. Foi leitor, catequista, coralista, membro dos conselhos económico e pastoral, integrou equipas de solidariedade, grupos bíblicos, etc.
Soube um dia que o velho pároco da sua aldeia havia falecido. Nem pensou duas vezes. Meteu-se no avião e veio ao funeral. "Podia não ser meu amigo, podia não me ter apoiado e incentivado, mas foi ele quem me baptizou. E isso é a minha maior riqueza: ser filho de Deus."

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