Naquele fim de tarde, ela apareceu. Disse que queria falar comigo e perguntou quando o poderia fazer. Respondi que naquele dia nada tinha marcado de especial. Portanto que estava à sua disposição.
Vinha muito revoltada, sobretudo contra Deus. O seu melhor amigo tombara na estrada devido a uma manobra perigosa de ultrapassagem de um condutor que albarroara o carro do seu amigo. E olhe que ele não perecia. Era um colega cem por cento, amigo, honesto, sempre disposto a ajudar, alegre. Ele!? Porquê? Que estava Deus a fazer para permitir morte tão injusta? E ficou longo tempo, deixando as palavras morrer devagarinho nos lábios…
Mas um mal nunca bem só. A sua mãe. Nunca vira pessoa assim. Vivera sempre para os outros, para o marido, para os filhos, para quem precisava da sua ajuda. Reformara-se há pouco tempo. Agora, com os filhos criados, todos esperavam que ela pudesse ter um pouco mais de descanso e de calma. Ao menos uma velhice tranquila. Mas qual o quê? Começaram a aparecer as doenças e está quase dependente dos outros para tudo. Isto é uma injustiça! Deus não podia consentir tal coisa… Como pode Ele permitir que sofra tanto quem passou a vida a fazer o bem!?
Parou. A custo conseguiu dominar um soluço fundo, sentido, vindo das entranhas da alma. “Sabe? Às vezes apetece-me a gritar que Deus não existe; outras vezes, ralho tanto com Ele! Ralho, ralho, ralho! Mas depois sinto-me mal comigo mesma. Não O queria ter tratado assim. Não foi essa a educação que me deram.”
E eu ouvi. Sempre. Procurei sentir com ela, despojar-me de mim.
Levantou-se, foi à torneira, encheu um copo de água que foi bebendo aos poucos. Sentou-se, recompôs-se e questionou-me: “Então não me diz nada?” Disse-lhe que talvez não precisasse de muitas palavras minhas; precisava antes que eu a ouvisse com os ouvidos do coração. “Isso também verdade. Agora que desabafei, sinto-me mais leve por dentro.”
Depois conversámos. É que questionar a nossa fé é dar passos na fé. Questionar Deus na nossa vida é sentir que Ele existe, embora possa não ser como queremos. Questionar-nos e questioná-l,O é bom. Nunca questionar pode ser apenas a prova de que Ele não nos incomoda, nem para o bem nem para o mal. A prova de que Ele não conta para nós. Para a ela conta, senão não estava ali a falar comigo e com Ele, através de mim.
De repente, lembrei-me de algo que li e que me marcou. Dizia mais ou menos isto: “Sabes, amiga, Deus existe, muito embora nos apeteça, muitas vezes, que Ele não exista para justificar muitas outras coisas. Ele não precisa que acreditemos que Ele existe. Porque existe mesmo sem isso. A resposta às tuas perguntas, ou dúvidas, busca-as na melhor imagem que conheço. Uma relação de amor. Imagina as tuas relações de amor. Têm os seus momentos. Bons, menos bons, maus. Mas nunca deixas, se fores verdadeira no teu amor, de amar essa pessoa. O que precisamos é de alimentar essa relação. Umas vezes a pessoa que amamos parece estar longe, ocupada, distante, estranha. Mas continua no nosso coração. Continua a dar-nos vontade de viver para a amar. O que precisamos é de alimentar essa relação. Nem sempre está como gostaríamos ou age como pretenderíamos. Mas continua sendo a mesma pessoa que amamos. Podemos não a compreender bem ou não a conhecer como gostaríamos. Mas continua sendo a pessoa que dá sentido à nossa vida, à nossa felicidade. O que precisamos é de alimentar essa relação. Imagina que Deus é essa pessoa que amas, e descobre as respostas por ti...”
No fundo dos olhos, brilhava agora uma luzinha. “Vou tentar descobrir…”
Disse obrigado e partiu.
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