Cheguei e dirigi-me ao balcão. Uma senhora atendeu-me com cara de poucos amigos. "A gente paga e é atendida com esta antipatia? Oh! Mas sabes lá os problemas que podem estar na origem desta reacção?"
Olhei para a sala, cheia como um ovo, e vislumbro um lugarzinho no meio. Sento-me. O médico está muito atrasado. "Ai se fosse o padre a chegar às celebrações com este atraso, era o lindo e o bonito... Assim, comem e calam!"
Embalado pelo zum-zum fluído do ambiente, disparo para os meus pensamentos. De repente, como pedrada no charco, uma frase acorda-me:
"- É tão feio que mete medo ao susto!"
Eram duas senhoras que assim se referiam ao marido de uma amiga comum.
Ligo o radar auditivo. Ao fundo, à esquerda, dois cavalheiros discutiam animadamente sobre futebol. As ondas verdes embatiam contra as vermelhas. O azul não entrava e eu bazei. À frente, do mesmo lado, um grupinho de mulheres torcia-se à volta de uma senhorita de belo aspecto. Doenças. Cada uma apostada em apresentar mais maleitas do que a outra. Penso que elas nem se ouviam. Cada uma queria apenas captar a intensidade da dor alheia para logo começar a montar as arribas do seu sofrimento e depois o desnudar à compaixão insofrida do grupo. Então a tal senhorita era um verdadeiro armazém de doenças! Cada pacotão!
Ligo o radar direito. Ao fundo, de pé, três homens carpiam sobre o estado da agricultura.
- É uma desgrácia! Não sei onde a gente vai parar... Sementes a adubos caríssimos e depois as as nossas coisas ou não as querem ou qurem-nas de graça! Qualquer dia, temos que andar prá aí com o saco na mão a pedinchar. A gente já nem ganha pra comer quanto mais pra pagar a Casa do Povo!
E seraivavam sobre o governo, os comerciantes, as cooperativas.
Desse lado, na fila da frente, um homem, aparentando ares de importante, ia mexendo displicentemente numa revista, enquanto olhava superiormente pelo canto do olho.
Na minha fila, uma adolescente a quem a costureira havia roubado abundantemente no pano, parecia uma libelinha tonta. Volta e meia levantava-se, maneava-se toda até ao espelho e toca a retocar a maquilhagem. A cada volta, a saia subia um niquito! Sentava-se então, cruzava as pernoilas, enquanto os dentes não cessavam de bombardear uma pobre chiclet.
- Está quieta, rapariga! Parece que tens bichos carpinteiros no corpo! - barafustava a mãe já impaciente.
- Oh!
À frente, no meio, dois senhores carecas iam dandos umas "porradas" no Sócrates, perante os acenos de simpatias do círculo mais próximo. Então o careca mais careca parecia apostado em suplantar o Marcelo Rebelo de Sousa. Cada tirada de fazer corar a gramática e de causar enjoos à inteligência mais tolerante e compassiva. Mas percebia-se o que queria dizer. Percebia-se sobretudo os motivos do assentimento de quem ouvia. E penso que é uma pena o nosso primeiro não abandonar o palácio das suas certezas para vir aprender na universidade da vida!
Há bastante tempo que as consultas se desenrolam a passo de caracol. Mas não será por isso que a sala tem tanta gente? As pessoas não gostam de ser consultadas à pressa, precisam de tempo, merecem tempo.
_ Ai, valha-me Deus! Já não me "despaxo" a horas do autocarro! Tenho que telefonar ao meu marido pra me vir buscar! - Caramunhava-se uma senhora de ar desgrenhado. - Minha "sinhora", veja-me aqui na lista, por favor que eu não "inxergo" estes números que parecem piolhos."!
E esticava até Lalim o telemóvel no braço.
"Hum! Há horas aqui e ainda ninguém puxou conversa sobre padres! É de admirar! Está para cair algum santo so altar abaixo!"
O altifalante chama pelo meu nome.
- Boa tarde, sr doutor!
- Boa tarde - diz quase sussurrando o médico, com um ar de indifrença e de rotina.
- Então...
- Então, sr doutor, é que estou aqui stressado pra caramba...
- Stressado?
- Pois, mandaram-me cá estar às tantas. Já são tantas!!
- Pois, sabe que as consultas têm que demorar o tempo necessário...
- Isso eu sei. Mas acho que o sr doutor já merecia um relógio que não atrasasse tanto...
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