segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A criança que fui

Lembro-me muito bem. Era o dia da profissão de fé. Naquele tempo, mesmo as freguesias mais pequenas, tinham muitas crianças. Por isso bastante criançada fazia naquele ano a sua profissão de fé - então mais conhecida por comunhão solene ou segunda comunhão.
Depois de durante várias semanas ter caminhado lá da minha aldeia para a residência paroquial onde o senhor abade, paciente e bondosamente, tentava a todo o custo empanturrar-nos de fórmulas que não entendíamos, chegou a grande festa. Para os pequenos da minha aldeia penso que o dia ainda era maior porque significava o fim do pesadelo de caminhadas diárias por caminhos de cabras. Eram bem duas horas!
Treinados militarmente para sabermos estar na Igreja e para desempenharmos convenientemente a nossa função, apercebo-me que nesse dia era meu parceiro de fila um rapaz pobrezinho que vestia umas calcitas de cotim, enquanto eu - sabe Deus os sacrifícios dos meus pais - aparecia todo engalanadito.
Ao almoço, graças à gentileza do dono de uma quinta vizinha da Igreja, os de longe comíamos à sombra da ramada a merenda que os pais levavam. Almoçávamos assim juntos, tentando aproveitar ao máximo a sombra das videiras. Eis que reparo então que os pais do meu colega de calças de cotim nada mais haviam posto sobre a mesa do que três ovos cozidos, um para cada um.
Esse miúdo pobre agarrou aquele ovo com vontade de o engolir de uma vez. Eu olhava para ele, enquanto minha mãe ia colocando sobre a mesa o nosso almocito melhorado. Então o coleguita corre na minha direcção, estende a mão e pergunta:
- Queres?
Confesso que quase nada comi, dizendo aos meus pais que não tinha fome. A pobreza do meu colega chocara demais a criança que eu era. E o gesto do meu meu amigo pobrezito, que da sua fome ainda me queria oferecer parte do seu ovo, desarmou-me. Sei que larguei pelo vinhedo fora porque queria chorar a mágoa que sentia perante a injustiça.
Felizmente que, ontem como hoje, a injustiça social continua a magoar-me.
Porquê? Porquê? Porquê? Tanta gente com demasiado e imensas pessoas famintas... Fortunas deixadas a animais de estimação e milhões de crianças
a morrer de fome..
Porque é que só os pobres hão-de ajudar os pobres!?

2 comentários:

  1. Olá!
    " A criança que fui " e a criança que continua a ser!!
    Desculpe a ousadia, mas se a preocupação com os mais desfavorecidos se mantém, então a criança que foi, continua aí dentro!Ainda bem...há muitas pessoas que a deixam morrer, assim que vislumbram o ego a correr mais do que elas mesmas...
    Por que razão só os pobres ajudam os pobres? Duas das muitas razões: porque têm o coração desprovido de qualquer cobiça material e livre para amar o semelhante; e porque, sendo da mesma "casta", se mantêm fiéis, não se comem uns aos outros!
    Têm neles mais espaço para deixar Jesus entrar e agir sem reservas!

    Gostei do seu blog: pedagógico, rico e profundo!

    Abraço sereno
    Ana Patrícia

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  2. Muito obrigado pela sua presença, pelo incentivo, pela partilha.
    Asas da Montanha

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