O sr. primeiro-ministro introduziu recentemente no debate político nacional a questão de saber se "o casamento tem por objectivo a procriação". Num discurso classificou-a como "uma frase pré-moderna e até pré-concílio do Vaticano II" (DN 12 de Julho). Por causa disso temos agora muitos jornalistas a perguntar, e muitas personalidades a pronunciarem-se, sobre este magno problema.
Relativamente à substância do tema não há muito a dizer.
No caso improvável de existir alguém de boa fé com dúvidas genuínas, pode afirmar-se que neste planeta nunca viveu ninguém que achasse que o casamento tinha como único objectivo a procriação. Trata-se de uma ideia tão abstrusa que não é pré-moderna. É aberrante. Tão aberrante como achar que o casamento não tem nada a ver com procriação.
O casamento tem por objectivo a procriação, como tem por objectivo o amor conjugal, o prazer sexual, a administração doméstica, a continuidade genealógica, a satisfação económica e muitas outras coisas. É importante não absolutizar qualquer desses aspectos, como é importante não omitir nenhum. Uma comparação ajuda a compreender.
Será que a refeição tem por objectivo o alimento? Quem reduza o almoço à simples necessidade nutritiva comete grande erro, ao esquecer o convívio social, a delícia culinária, o ritual de amizade.
No entanto, nas orgias da Antiguidade havia a prática de os convivas vomitarem o que comiam para poderem voltar a encher a barriga. Assim, excluía-se da refeição a nutrição, reduzindo-a a simples meio de prazer e convívio.
Hoje reprovamos esse comportamento, mas achamos razoável banir a procriação do casamento. O sr. primeiro-ministro não reparou que o mal actual está na exclusão da procriação, não na sua exclusividade.
O problema no entanto não é conceptual, mas político. A procriação hoje não constitui uma simples questão moral, mas é um elemento crucial da estratégia nacional. Por isso aquelas afirmações, mesmo envolvidas na refrega partidária, são determinantes.
Foi no consulado de José Sócrates que, pela primeira vez no Portugal moderno, o número de óbitos ultrapassou o de nascimentos, em 2007. Assim, excluindo movimentos migratórios, a população nacional está em acelerada decadência. Este facto estrutural é, sem dúvida, o mais influente e crucial da situação actual. As suas consequências culturais, sociais, psicológicas, económicas, mesmo históricas e nacionais, serão enormes. Até naqueles temas mais mesquinhos, financeiros ou tecnológicos, que costumam preocupar o Governo, os impactos se sentirão.
Todos conhecem bem o drama do financiamento da Segurança Social, que resulta directamente daqui. Mas há muito mais. Deve compreender-se que quando a população está em queda muito do que sabemos da sociedade muda de natureza e inverte a orientação. O que significa "crescimento económico" se a população cai? Valerá a pena fazer investimentos produtivos num mercado em contracção? Para quê novos aeroportos ou ferrovias com menos gente?
Com a população a descer, o preço dos imóveis cairá por ausência de procura e o sector da construção terá de se reconverter para a demolição de casas crescentemente devolutas. Até a Bolsa terá dificuldade em subir num país em decadência. Os custos fixos ganham importância e o Orçamento do Estado aumenta o peso. Na agricultura abundam os baldios, faltam os braços para trabalhar, como as bocas para comer. Tudo tem de ser reconvertido para a desertificação: menos polícias e militares, com menos cidadãos para proteger; menos contribuintes, mas também menos fiscais de finanças.
Este cenário não é inevitável. Mas daqui a umas décadas, se os nossos descendentes sentirem na pele os terríveis efeitos da degradação demográfica e queda da fertilidade, será difícil compreender a ligeireza e irresponsabilidade de um primeiro-ministro que hoje introduz assim o tema da procriação no debate político.
Será difícil aceitar que não o faz por maldade, mas por simples inconsciência.
Embora sejam a inconsciência e a ligeireza que criam o problema.
João César das Neves. professor universitário
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