Lê-se no site do Expresso: “O acervo de 11,5 milhões de ficheiros mostra como uma indústria global de sociedades de advogados, empresas fiduciárias e grandes bancos vendem o segredo financeiro a políticos, burlões e traficantes de droga, bem como a multimilionários, celebridades e estrelas do desporto.” Generalizar vale a pena: entre o Almodovar e o Putin não há diferença. Entre o Messi e um traficante de droga ainda menos. Entre quem ganha licitamente muito dinheiro e procura pagar menos impostos e quem rouba ou obtém ganhos em actividades criminosas não está ser feita qualquer diferença.
Neste momento é extraordinariamente impopular assinalar esta diferença. Mas ou temos a coragem de o fazer ou acabaremos todos delinquentes. Não nuns quaisquer Panama papers mas nuns prosaicos Amadora ou Cedofeita papers pois ao aceitarmos que procurar pagar menos impostos sobre rendimentos lícitos é um crime equiparável a procurar esconder o dinheiro que se obteve a traficar droga é o primeiro passo para acabarmos todos delinquentes fiscais. Um passo tão mais perigoso quando o estado social está a dar lugar a um estado fiscal. Autoritário. Intrusivo. Que não admite contestação.
Hoje o NIF é mais importante que o cartão de cidadão. O Estado atribui isenções fiscais como outrora os reis conquistadores davam títulos e terras. Perante a justiça fiscal não há inocentes até prova em contrário mas apenas a obrigação de pagar primeiro e a possibilidade de contestar depois. Para mais tanto a repressão fiscal como a fuga irão aumentar porque os estados precisam hoje de dinheiro tal como no passado precisaram de controlar aquilo que pensavam ou em que acreditavam os seus cidadãos.
A presente geração de políticos cresceu na convicção de que o dinheiro aparecia sempre. Mas como o dinheiro escasseia e a sua única fonte são os contribuintes, cada vez mais nos tornaremos, todos nós, potenciais criminosos, fiscalmente falando.
A avidez fiscal dos estados levou o fisco a ir muito para lá das suas funções e deu à máquina fiscal informações e poderes que põem em causa a nossa segurança. Aquilo que, por exemplo, o fisco português hoje sabe de qualquer um de nós causaria inveja a qualquer pretérita polícia. Política ou criminal. Como aqui alertou João Pires da Cruz a propósito da e-fatura “o nosso Estado é muito provavelmente o primeiro do mundo capaz de ligar padrões de consumo e património na mesma base de dados (…) A República Portuguesa está prestes a atingir o arquétipo do regime fascista dos livros de ficção científica!”
O que comemos, o que bebemos, onde estivemos… tudo consta no portal da finanças. Nunca polícia alguma concentrou em Portugal tal nível de informação sobre a vida dos cidadãos.
Os Panama papers revelam muito sobre o mundo em que estamos: das fortunas dos oligarcas à circulação do dinheiro no mundo do crime. Revelam também como a fuga à voracidade fiscal dos estados é praticada com afinco por alguns dos que muito folcloricamente como é o caso de Almodovar defendem o papel do Estado enquanto grande redistribuidor. Mas não só. Os Panama papers acontecem num mundo em que os paraísos fiscais se tornaram na nova heresia. Na encarnação do mal para aquele que, tendo deixado cair o velho propósito revolucionário de criminalizar a propriedade, viram na máquina fiscal um mecanismo superior de controlo dessa mesma propriedade e dos cidadãos. Não dos que levam ou levaram dinheiro para o Panamá mas tão só da sua conta bancária para o seu bolso. Na verdade, haverá sempre um Panamá para os muito ricos. Por isso convém que nos acautelemos. Caso contrário a perseguição àquilo que de ilícito fazem os muito ricos acabará tão só a tornar ainda mais difícil a vida dos demais.
Helena Matos, Observador 5/4/2016, aqui
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