terça-feira, 29 de julho de 2008

Uma longa história de sofrimento e vontade de vencer

- Não me conhece? - disparou à queima roupa após uma saudação apressada.
- Não - respondi.
Uma das minhas limitações é a deficiente memória geográfica. Fixar pessoas e nomes é uma dificuldade tremenda. E as desilusões que causo a outros e me causo a mim! Mas enfim, conforme diz o povo, "não nos fizemos, fizeram-nos".
Tinha sido uma menina da catequese de uma paróquia por onde passei há muitos anos. Recordou uma ou outra peripécia e à tona da memória começou a aparecer a figura linda da criança que fora. Tão diferente agora! Os anos e o sofrimento haviam deixado no seu rosto vincos assinaláveis. Fora com os pais para uma grande cidade após concluir o 2º ciclo.

Contou-me uma longa história onde o sofrimento e a vontade de vencer sempre foram indissociáveis. Casara e do matrimónio vieram três lindos rebentos, duas meninas e um rapaz. Viviam do trabalho de ambos e tudo parecia correr sobre rodas. Um homem, mais ou menos da idade do marido, começou a aparecer lá por casa, sempre muito atencioso e simpático. Era um amigo do marido. E como tal, era-o também da família. Uma vez ou outra dormiu mesmo lá por casa.
Lentamente o comportamento do marido começa a mudar. Ia-se tornando mais irascível, menos paciente para os miúdos e o dinheiro começou a faltar, com mil desculpas. Ele que nunca faltara com todo o ordenado em casa. Por outro lado, as saídas tornaram-se frequentes e prolongadas. Depois começou a ser agressivo. Perguntava-se a si mesma o que se teria passado na cabeça do marido. Começou a andar mais atenta. Até porque algumas vezes ele já não ia trabalhar...
A vida em casa começou a ser inferno. Não havia dinheiro e sobravam as ofensas e maus tratos. Primeiro o cordão, depois um fio, mais tarde louças mais caras... tudo ia desaparecendo de casa. Até os pacotes de leite e iogurtes, que os pais lhe davam para as crianças, voavam...
Viu com os seus olhos o famoso pó. Já não tinha dúvidas. O marido, pai de três maravilhosas crianças, estava metido na droga.
Afinal aquela simpática e atenciosa criatura, que se fazia passar por amigo do marido, era o demónio em figura de gente. Fora quem o arrastara para a desgraça e, com ele, toda a família.
Já não reconhecia aquele rapaz honesto, trabalhador, digno por quem se apaixonara. A casinha que ambos, com trabalho e amor, tinham construído, estava agora completamente vazia. A fome deixava marcas nela e nos filhinhos. Trazia no corpo a evidência dos maus tratos. Os próprios pais dela chegaram a ser agredidos por não darem o dinheiro que o genro pedia e eles não tinham.
Recorreu a todos, pedindo ajuda. Só que ele não se queria curar. Toda a gente a aconselhava a largar com os filhos, pois trabalhadeira como era nunca faltaria o pão. Mas gostava ainda muito dele. Queria-o recuperar. Não desistiria.
Depois de muito porfiar por todos os meios, consegue finalmente que ele vá fazer uma cura. Sempre lhe transmitiu toda a coragem e o encheu de carinhos, mesmo quando lhos recusava. Finalmente veio. Sente-o muito melhor e ele diz-se curado, que droga nunca mais. Mas ela tem medo de recaídas, embora lhe dê toda a força. Como perdera o emprego, ela sugeriu-lhe que regressem à aldeia dele e granjeiem a quinta que os pais lhe deixaram. Por amor ao marido e à família abandona também o seu emprego. Consegue que regressem sem ninguém se aperceber e mudam de telemóvel. O medo da influência dos antigos companheiros de droga...

Já estão há cinco anos na quina. A vida voltou a sorrir. Ele é agora ainda mais maravilhoso do que fora antes de cair na desgraça. Procura por todos os meios recompensar mulher e filhos das agruras por que os fez passar.

Não esqueço aquele sorriso largo, vitorioso, pacífico com que ela se despediu de mim:
- Valeu a pena! Quando amamos, tudo vale a pena.

2 comentários:

  1. São como gotas de água fresca na agrura dos campos estas últimas palavras!

    "Quando se ama, vale a pena!"

    É uma triste mas bela história de Amor!

    Triste, por ser verdadeira e tanto sofrimento encerrar.
    Bela por ser um apelo à esperança, que o Amor vence quase tudo,...

    A minha solidariedade e orações para esta familia e, especialmente, para esta mulher coragem!


    so

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  2. Obrigado pela presença, pela reflexão, pela partilha.
    Venha sempre.
    Muita paz.

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