O papa eleito a 13 de março de 2013 está a operar uma revolução do visual
do topo da Igreja Católica. De um modo geral, a sua atuação é encarada com
simpatia, embora necessariamente corra alguns riscos, que eventualmente podem
redundar em resultados desagradáveis. São, no entanto, de destacar duas
posições contraditórias: a de quem se diz agnóstico e até ateu e adere ao
franciscanismo de Bergoglio e anota tudo quanto ele diz ou faz de positivo em
termos antropológicos; e a dos ultraconservadores em cristianíssima vida, que o
acusam de marxista e anticlerical, irmanados na reação daqueles que, na
alegação de que era de esperar mais, já se mostram desiludidos porque não
avança com determinadas opções contrárias aos costumes defendidos
tradicionalmente pela hierarquia católica, como: a abolição do celibato
eclesiástico obrigatório, a ordenação sacerdotal de mulheres, o casamento de
pessoas do mesmo sexo, a contraceção, o relacionamento desempoeirado com os
divorciados recasados, a despenalização da interrupção voluntária da gravidez
(eufemismo para designar o aborto) e a eutanásia.
Simpatizando com o acolhimento dado à palavra e aos gestos papais por
parte de quem se sente do lado de fora, só gostaria de que tal acolhimento
progredisse em aprofundamento do pensamento em bases verdadeiramente
antropológicas com todas as consequências e não configurasse uma simples adesão
à atitude de uma imprensa alargada que desde cedo se tornou amiga do atual
bispo de Roma. Por outro lado, dou de barato o labéu com que lhe queiram atirar
de marxismo ou coisa parecida. Perante o panorama em que a crise pandémica
lançou o mundo, quero lá saber qual a ideologia dos críticos. Haja, sim, quem
denuncie as causas da crise, trave os resultados e proponha soluções
sustentáveis para o bem-estar de todos, mormente dos que não têm (ou deixaram
de ter) vez e voz. Também não creio que Francisco, na sua vis
reformista, desdiga uma vírgula da doutrina católica e costumes que ela inspira
nem mexa profundamente nas questões disciplinares meio fraturantes, como são o
celibato eclesiástico obrigatório na Igreja Latina, que não na oriental, e a
não ordenação sacerdotal de mulheres, embora as queira colocar em importantes
centros de decisão.
E que dizer do propalado anticlericalismo?
Na Igreja Católica distinguem-se duas condições: a laical e a clerical.
Uns são os leigos, membros do povo de Deus, em razão do batismo; e outros, que,
sem deixarem de ser povo de Deus assumem um serviço específico e constituem o
clero. Até à promulgação, em 15 de agosto de 1972, da Carta Apostólica
“Ministeria Quaedam” por Paulo VI, entrava-se na clerezia com a cerimónia da
Prima Tonsura, em que o bispo cortava umas repas de cabelo na cabeça do
candidato e o dava como pertencente ao clero, após o que ele deveria ostentar
no alto da cabeça uma rapadela de cabelo em círculo que se denominava de coroa.
Seguiam-se as ordens menores – ostiário, exorcista, leitor e acólito – tidas
como verdadeiros ministérios. Depois, vinham as ordens maiores – subdiaconado,
diaconado, presbiterado (os sacerdotes padres) e, em casos específicos, o
episcopado (os sacerdotes bispos). Com o subdiaconado assumia-se a obrigação de
rezar diariamente o ofício divino, conhecido como o breviário. Sacerdotes
(exerciam o sacerdócio ministerial, porque o sacerdócio comum era e é o de
todos os que são batizados) eram os padres e os bispos. Clérigos eram todos os
acima referidos que não fossem leigos. Depois da exaração e publicação daquela
carta apostólica, em consonância com as determinações do Concílio Vaticano II,
a Prima Tonsura e as Ordens Menores ficaram suprimidas e a entrada no clero
passa a suceder aquando da ordenação de diácono. Os candidatos ao sacerdócio
ministerial devem ser instituídos nos ministérios de leitor e de acólito
(podendo este continuar a ser chamado de subdiácono), a conferir pelo bispo ou
pelo superior maior de instituto religioso. A seguir, vem o diaconado, que pode
ser transitório rumo ao presbiterado ou permanente, caso em que pode ser
conferido também a homens casados, devidamente formados e amadurecidos na vida,
que não voltarão a casar em caso de viuvez.
Ora da condição de clérigo facilmente se passa ao clericalismo, que consiste,
entre outros fatores, no caráter quase sacral do traje próprio, nas imunidades,
na pretensa supremacia frente aos leigos, na impossibilidade psicossocial de
execução de determinadas atividades, na procura e manutenção de múltiplos
privilégios, na contraindicação de frequentar certos espaços e assim por
diante. Mais: ao clero – que devia ser dispensado do serviço militar, não devia
exercer a advocacia, a medicina e a atividade comercial – competia ensinar a
doutrina (era a expressão da Igreja docente); ao leigo cabia somente aprendê-la
(era a expressão da Igreja discente).
Porque a condição clerical se tornou excessiva na atitude, posição
social, vivência como casta à parte, acessível a quem não o deveria ter sido,
com base em prebendas, e porque se criou a confusão por muita gente aceite de
que frades e freiras também pertenciam ao clero – começou a desenhar-se, a
crescer e a agigantar-se a onda anticlerical. Mas a causa não vem somente do
clero. O racionalismo, num determinado momento, o liberalismo, o marxismo e o
positivismo, com o republicanismo exacerbado potenciaram exponencialmente o
combate já não somente ao clero, mas à Igreja e à própria religião.
Inclusivamente, decisões legislativas em si mesmas boas, por mais consentâneas
com o avanço civilizacional – como a declaração dos direitos do cidadão, a
separação da Igreja do Estado, o Registo Civil, a divisão dos poderes políticos
– foram produzidas em contexto ferozmente anticlerical, a ponto de se criar a
ideia da incompatibilidade entre catolicismo e república e se confundir clero e
religião, traje eclesiástico e estado clerical.
Nestes dias, apesar de se ter acertado na igualdade fundamental de todos
enquanto povo de Deus e embora se tenha esbatido a diferença entre as ditas
igreja docente e igreja discente, passando todos a ensinar e a aprender de
acordo com o seu grau de formação, mantém-se um certo clericalismo. Assim,
querem alguns que os padres vivam somente do altar, mas tornam-se mesquinhos no
contributo para o sustento do clero; querem outros que os padres se pronunciem
sobre quase tudo, mas acusam-nos de se meterem aonde não devem. Por outro lado,
parece haver a tentativa de fazer dos leigos uma espécie de padres de segunda
para obviar à falta de clero. E lá vêm as orientações de topo: a evangelização
é tarefa de todos, mas compete aos leigos envolver-se a fundo na vida económica
social e política e imbuí-la do espírito evangélico – com todas as suas
consequências de palavra, oração e ação – cabendo aos pastores (bispos e
padres) a palavra de estímulo, impulso e moderação, sem se perderem nas
querelas partidárias, a presidência às funções litúrgicas e o zelo pela pureza
da doutrina e dos costumes.
E o papa, que posição tem assumido neste contexto?
Todos o sabem: com o povo de Deus é cristão (pede que rezem, mistura-se
como as pessoas, vai um pouco ao encontro de todos os que lhe escrevem, falam
ou acenam, beija, abraça, coça a cabeça…); para o povo de Deus, é o bispo de
Roma, pelo que abençoa, prega, desloca-se, mostra-se em gestos pouco usuais;
para o mundo, tenta ser uma voz incómoda e de esperança e ser testemunha do
acolhimento de Cristo.
Mas mais do que “anticlerical” – contra imunidades indevidas, manutenção
de privilégios, combate ao carreirismo eclesiástico, repreensão a padres e bispos
por abusos, por gastos excessivos, por viagens demasiado frequentes – ele é
sobretudo “aclerical”.
Em que consiste o seu aclericalismo? Que os pastores se envolvam nos
ambientes e não fiquem permanentemente em casa ou no templo (fica na memória o
lava-pés a duas mulheres, sendo uma delas não cristã); vão aonde não é fácil
(ser pastores, mas com o odor das ovelhas) e não amoleçam nos ambientes
costumeiros; ajam sobre a base sustentante da oração (não rezar sem agir, não
agir sem rezar); sejam promotores da fé e não seus fiscais; e sejam fautores da
responsabilização, mas não recusam os bens da salvação a quem os solicite (fica
registado o batismo a filho de mãe solteira e a filha de pais casados
civilmente – parece ter-se confundido nos últimos tempos as condições de
apadrinhamento com as da paternidade / maternidade). Prefere viver em Santa
Marta com as pessoas e não isolado no apartamento do Palácio Apostólico, que
será desconforme, mas não luxuoso. Renuncia à limusine e ao papamóvel blindado
– corre risco que não teme. Quis viajar no Rio de Janeiro em automóvel normal e
ficou engarrafado no trânsito. É a vida!
E são estes alguns dos factos que emolduram aquilo que no Papa Francisco
parece compaginar uma certa rutura, um aclericalismo e, certamente, um desconforto
para quem estava demasiado formatado num quase imobilista dinamismo eclesial.
Porém, não fica vacinado contra algumas ambiguidades. Por exemplo, criticar os
bispos que viajam pode, ao salientar a responsabilidade pela própria diocese,
fazer obnubilar a paulina solicitude por todas as Igrejas ou envolver uma
crítica à designação de bispos só com título de diocese já não existente, só
para garantir o exercício de cargo. A residência em Santa Marta implicará a
inacessibilidade da unidade hoteleira a outros clientes; e a censura ao bispo
alemão gastador terá sido feita atendendo a um manifesto de populares e pode
não ter implicado a distinção entre o erário da diocese e o da casa episcopal,
habitualmente colocados em campos e responsabilidades diferentes.
Resta saber porque é que palavras bem eloquentes e gestos similares dos
predecessores foram tão ingloriamente esquecidos. Mas oxalá que se vá a tempo!
2014.01.13
Louro de Carvalho
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