quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Francisco e o batismo de duas criancinhas especiais


O Papa Francisco, no passado dia 13 de janeiro, festa litúrgica do Batismo do Senhor, último dia do tempo litúrgico do Natal, presidiu à Celebração da Eucaristia, na Capela Sistina, em que se integrou a ministração do sacramento do batismo a 32 crianças. Desse grupo de crianças fazem parte duas crianças, das quais uma é filha de mãe solteira e outra de pais casados apenas civilmente.
A exceção surpreendeu pela positiva a opinião pública, que não se cansa de elogiar este gesto tido como inovador. Confesso que não me revejo nesse coro encomiástico pelo simples facto de que o anormal face à legislação canónica era a negação do sacramento do batismo a filhos de mães solteiras ou de pais casados apenas pelo civil. Creio ter-se confundido as exigências legais estatuídas para padrinho ou madrinha com as condições de vida dos pais, que não se escolhem, mas a quem se deve obediência na menoridade e respeito para sempre. É certo que a ação pastoral, sobretudo após o Concílio Vaticano II e a promulgação do Código de Direito Canónico por João Paulo II, em 1983, aconselhou vivamente a promoção da consciencialização e responsabilização de pais e padrinhos frente a este sacramento da iniciação cristã, de que resultou a organização dos CPB (Cursos de Preparação para o Batismo), os quais, tornando-se quase obrigatórios nunca constituíram condição sine qua non. Desde miúdo e nos ambientes que me foi dado conhecer e em que tive de intervir, sempre vi e pratiquei a prática inclusiva, no por muitos declarado pressuposto de que os filhos não podem ser responsabilizados pelos atos dos pais. Claro que sempre foi de respeitar os poucos casos em que os pais se opunham. O mesmo não se entendia em relação aos padrinhos, que tinham obrigatoriamente de haver recebido o batismo e, em situações normais, deviam ter uma vida em consonância com a fé cristã, ter a intenção de servir como verdadeiros padrinhos. E, enquanto o velho código, promulgado em 1917 por Bento XV, exigia que o padrinho e a madrinha tivessem atingido o uso da razão, o código de 1983 exige a idade de 16 anos e a receção do sacramento da confirmação ou crisma.
Mas vejamos o que reza a legislação canónica nos dois aludidos documentos, no atinente sujeito do batismo, se se tratar de criança, e aos pais. Não me deterei nos pressupostos filosóficos que enformam qualquer um dos referidos instrumentos legislativos nem a orientação teológica à luz da qual foram plasmados. Todavia, importa assegurar que entre o concílio ecuménico que precedeu cada um deles a promulgação do conveniente instrumento canónico mediou tempo suficiente para a formulação teológica pós-conciliar.
O Código de 1917 dedica ao assunto, no Livro III, sob a epígrafe “de rebus” e sob os designativos “de sacramentis” e “de baptismo”, os cânones 745 a 751. Define como sujeito do batismo todo o ser humano (e só ele) que peregrina no mundo (“viator”), ainda não batizado (C.745), e define como criança o ser humano que tenha atingido a idade de sete anos, a quem equipara os seres humanos que sejam destituídos do uso da razão. Nas restantes situações vale a disciplina vigente para os adultos. É óbvio que aquele código pressupõe como normal o ambiente de cristandade. Mesmo assim, fornece indicações minuciosas sobre o batismo sob condição ou em absoluto de crianças em fase de nascimento, crianças deformadas (CC.746, 747 e 748). Por sua vez, o cânone 749 determina que os expostos e os encontrados (“infantes expositi et inventi”) sejam batizados condicionalmente, a não ser que haja certeza segura de que já tenham sido batizados; o cânone 750, para as crianças que sejam filhas de pais infiéis (ou seja, aqueles que não têm fé), e o cânone 751, para crianças filhas de pais não católicos (ou em que um deles o não seja) ou que tenham incorrido em heresia, cisma ou apostasia, estabelece: que são licitamente (não diz obrigatoriamente) batizadas mesmo que os pais se oponham, desde que se preveja que venham a morrer antes de atingido uso da razão; e, fora do perigo de morte, são licitamente batizadas desde que seja acautelada a sua educação católica nos seguintes termos: se os pais ou tutores (ou, pelo menos, um deles) consentirem no batismo; ou se a criança se encontrar na situação de falta, abandono ou perda de vínculo por parte de familiares ou tutores. Como se vê, a legislação vigente até 1983 não impedia a ministração do batismo a filhos de mães solteiras (e eles não foram inventados a partir do último quartel do século XX) nem a filhos de pais casados apenas pelo civil (e em 1917 já pululavam as repúblicas com as leis do divórcio, do registo civil e da separação entre as Igrejas e os Estados).
Quanto ao código de João Paulo II, pontífice que não foi menos missionário que Bento XV, temos a matéria inserta no Livro IV (“do múnus santificador da Igreja”), na sua parte I (“dos sacramentos”) e no título I (“do batismo”) O cânones respeitantes ao nosso tema têm os números 864 (que também considera com sujeito do batismo todo e só o homem ainda não batizado) e de 867 a 871. O cânone 867 preceitua que, fora do perigo de morte, caso em que a criança deve ser batizada sem demora, os pais procurem, logo nas primeiras semanas, tratar do batismo do filho, pedindo o batismo ao pároco respetivo e preparando-se devidamente. O cânone 868 requer para a licitude do batismo o consentimento dos pais ou de quem as suas vezes fizer e a esperança de educação católica. Caso esta esperança falte totalmente, o batismo deve ser diferido no tempo indicando-se aos pais o motivo. Ora quantos não são serão os atos de batismo em que os pais tudo prometem cumprir, para que haja festa e beneplácito dos “arquiparentes”, e no dia seguinte dizem adeus à Igreja! O mesmo cânone refere que em perigo de morte filhos de pais católicos e até de não católicos são licitamente batizados mesmo contra a vontade dos pais. Por seu turno, o cânone 869 dispõe que, na dúvida sobre a existência do ato de batismo ou sua validade, o batismo deve ser ministrado sob condição. O cânone 870 manda que se batize a criança exposta ou encontrada (“infans expositus aut inventus”), a não ser que séria investigação conduza à certeza segura de já ter sido batizada. E o cânone 871 manda, quanto possível, batizar os fetos abortivos, se estiverem vivos.
Pelo exposto, tem de concluir-se como abusiva a prática excludente que foi alastrando por diversas parcelas territoriais da vetusta Igreja Católica, quiçá a coberto da procura de maior responsabilização, a par de ostensivo facilitismo noutras situações, sobretudo de apadrinhamento. Por isso, dificilmente se pode alinhar na declaração do porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa que se atém à generalizada “interpretação restritiva” da legislação eclesiástica e que ninguém deve ser “mais papista que o papa”.
Finalmente, quanto à atitude de Francisco, embora visualmente corajosa frente a algumas práticas indevidamente excludentes, a meu ver, e simpática aos olhos dos bem-intencionados e da opinião pública, que preza o achamento de diferenças substanciais nestes gestos pontificais, não passa de apelar ao mínimo de bom senso e de repor as coisas nos seus devidos termos – o valor e a importância do batismo (e mesmo da sua necessidade eclesial) acima das condições de quem o solicita “razoavelmente”, como ensinava a generalidade dos professores de Teologia Moral, mesmo antes do Vaticano II (Lembram-se os lamecenses do velhinho Morais e Costa ou dos lidos e relidos Eduardo Regatillo e Piñero Carrion?).

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