O
binómio “Misericórdia e Justiça”, recuperado pelo Papa Francisco e glosado
recentemente na audiência geral do passado dia 3 de fevereiro, era o lema do
Santo Ofício pespegado nos respetivos estandartes. Porém, o sentido papal do
binómio é bem diferente do da Inquisição.
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A
misericórdia inquisitorial enformava a inquirição e destinava-se a despertar no
réu as necessárias disposições para, apesar dos delitos, se candidatar à eterna
salvação, confiado na misericórdia. Além disso, a misericórdia era atributo
exigível ao inquisidor cujo modelo
se inspirava nos arquétipos do pai e sacerdote. Cabia-lhe, além da punição (justiça), a consolação e animação do réu, admoestando-o
com boas palavras à confissão e
pedido de perdão das culpas (cf Santo Ofício, 1552, cap. 26).
Por isso, o inquisidor devia percorrer os cárceres, ao menos quinzenalmente e
sempre que necessário, para ouvir os presos sobre as suas necessidades e
provê-las, procurando saber se sofrem algum mau tratamento (id, cap. 30). Recomendava-se-lhe expressamente que não escandalizasse
“com suas palavras os presos nem outras pessoas que requeiram sua justiça” (id., cap. 32), dado que deve representar não a justiça implacável,
que na prática caraterizava a ação do tribunal, mas a justiça misericordiosa,
que se condói da sorte do réu e lamenta ter de o punir para sua própria
salvação (apud Gama Lima, Scielo, novembro de 1999).
Segundo os critérios do século XXI, estas
disposições, confrontadas com as práticas correntes para obter a confissão e as
decorrentes de sentença, parecem raiar a malhas do cinismo.
Francisco,
ao invés, assume o binómio “Misericórdia e Justiça” na esteira da Bíblia, que
nos apresenta “Deus como misericórdia infinita, mas
também como justiça perfeita”.
Parecendo, à primeira vista, duas realidades mutuamente
contraditórias, na verdade não o são, porque “é precisamente a misericórdia de
Deus que leva ao cumprimento da justiça autêntica”.
Na
administração legal da justiça, “quem se considera vítima de abuso”, dirige-se
ao tribunal e “pede que se faça justiça”. É “uma justiça retributiva, que
inflige a pena ao culpado, segundo o princípio que a cada um deve ser dado o
que lhe é devido”.
Já
o livro dos Provérbios diz: “Quem pratica a justiça está destinado à vida, quem
persegue o mal está destinado à morte” (cf. Pr11,19). E Jesus fala desta justiça na parábola da
viúva que repetidamente ia ter com o juiz e lhe pedia: Faz-me justiça contra o meu adversário (cf Lc 18,3).
Porém,
diz o Papa, “esta via não leva à verdadeira justiça porque não vence o mal, apenas
o limita”. “Só na resposta com o bem” – garante – “é que o mal pode ser deveras
vencido”. Por isso, a Bíblia “apresenta como via mestra a percorrer” outro modo
de fazer justiça, que “evita o recurso ao tribunal”, levando a vítima a
dirigir-se ao culpado no apelo à consciência, “ajudando-o a compreender que
está a praticar o mal” e “exortando-o à conversão (vd Mt 18,15-16).
Ao
ver e reconhecer o próprio erro, o culpado “pode abrir-se ao perdão que o
lesado lhe oferece”. Após a “persuasão do que é o mal”, o coração “abre-se ao
perdão que lhe é oferecido”. Este – assegura o Papa – “é o modo de resolver os
contrastes nas famílias, nas relações entre esposos ou entre pais e filhos,
onde o ofendido ama o culpado e deseja salvar a relação que o une ao outro”. É
efetivamente “um caminho difícil” que requer do ofendido a prontidão para “perdoar
e desejar a salvação e o bem de quem o ofendeu”. No entanto, “só assim a
justiça pode triunfar, porque, se o culpado reconhecer o mal praticado e deixar
de o fazer, o mal já não existe, e aquele que era injusto torna-se justo,
porque foi perdoado e ajudado a reencontrar a via do bem”. Assim, o mal não
fica apenas limitado, mas, cedendo ao bem, deixa de existir. É a justiça ditada
pela misericórdia, a justiça que abre espaço ao perdão.
Este
é um caminho possível, porque é a via de Deus. Com efeito, diz o Papa
Francisco:
“É assim que Deus age em relação a nós,
pecadores. O Senhor oferece-nos continuamente o seu perdão e ajuda-nos a
acolhê-lo e a tomar consciência do nosso mal para nos podermos libertar dele.
Porque Deus não quer a nossa condenação, mas a nossa salvação. Deus não deseja
a condenação de ninguém!”
À
objeção de que Pilatos ou Judas mereciam a condenação, Francisco contrapõe:
“Não! Deus queria salvar Pilatos e também
Judas, todos! O Senhor da misericórdia queria salvar a todos! O problema é
deixar que Ele entre no coração. Todas as palavras dos profetas são um apelo
apaixonado e cheio de amor que procura a nossa conversão. Eis o que o Senhor diz
através do profeta Ezequiel: Porventura comprazer-me-ei com a morte do pecador
[...] ou com a sua conversão, de maneira que ele tenha vida? (cf Ez 18,23; e 33,11).
É isto que agrada a Deus!”
E
os homens não podem esperar que Deus utilize na sua atuação os critérios dos
homens, mas têm de acertar o passo com o passo de Deus. E este passo segue o
ritmo do coração de Deus, “o coração de Pai que ama e deseja que os filhos
vivam no bem e na justiça e, portanto, vivam em plenitude e sejam felizes”; o
coração que ultrapassa o nosso magro conceito de justiça e nos abre “aos
horizontes infinitos da misericórdia”; o coração que não nos trata segundo a
medida dos nossos pecados, não nos repreende, nem conserva a sua ira (cf Sl 103/102,9-10). É este coração de pai,
que nos ajude a mudar de vida, que desejamos encontrar no confessionário –
ensina o Papa – “um pai que nos dê a força para continuar”, que “nos perdoe em
nome de Deus”.
Também
o confessionário está ao serviço da justiça misericordiosa que tem a força de
mudar as pessoas a partir de dentro de si mesmas e de as levar à prática
constante e empenhada da justiça social, que seja equitativa e distributiva,
dando a cada um, não apenas aquilo que é seu, mas tudo aquilo de que precisa
para viver com dignidade (liberdades, direitos e garantias), porque isso lhe
pertence por direito e não por esmola.
É a
misericórdia que torna a história de Deus com Israel – e agora com a Igreja – uma
história da salvação. A repetição contínua do segmento “eterna é a sua
misericórdia”, no Salmo 136/135, sugere o rompimento do círculo
espácio-temporal para inserir tudo no mistério do amor. É como se se quisesse
dizer que o homem, não só na história mas também pela eternidade, está sempre
sob o olhar do vulto misericordioso do Pai. Não foi por acaso que o povo de
Israel quis inserir este Salmo – o “grande hallel” – nas festas litúrgicas mais
importantes. (Francisco,
MV, 4-5).
***
Sobre o tema,
Frei Herculano Alves, em artigo na revista Bíblica
(de que se respigam
alguns traços),
comentando o binómio “Misericórdia e
Justiça na Bíblia”, assenta que o termo “misericórdia” soa a estranho num
mundo de reivindicações de justiça social, de pedir justiça para os culpados ou
vingança de qualquer pena, real ou aparente. Por isso, termo e conteúdo ficam
relegados para o campo religioso e teológico e, mesmo aí, são não raro mal
entendidos. A misericórdia é, pois, virtude ameaçada porque vista com
desconfiança como algo desnecessário, como se a justiça humana fosse apta para
resolver todos os problemas. E palavras como misericórdia e compaixão
deixaram de integrar a linguagem comum contemporânea.
Não obstante,
na Bíblia, termos como misericórdia são portadores de um conteúdo essencial. Na
verdade, misericórdia e justiça, quando bem entendidas, exprimem um traço
essencial do rosto bíblico de Deus. João Paulo II, na encíclica Dives in Misericordia, (n.º 3), fala da misericórdia como a medula do ethos evangélico a ultrapassar, em
grande, o que a justiça humana pode fazer.
***
Tanto o Deus do Antigo Testamento como o no Novo
Testamento é “o Pai da misericórdia”.
Distinguir o
Deus veterotestamentário como Deus da justiça do Deus neotestamentário como
Deus da misericórdia é inexato. Apesar da diferença de linguagens, Deus é único
e o mesmo. E já o Antigo Testamento apresenta os tempos messiânico como os
tempos da paz, da justiça e da edificação do paraíso na terra, que o Espírito
de Deus renova. E a misericórdia de Deus faz parte deste paraíso. Depois, a
ação de Deus no Antigo Testamento está indelevelmente marcada pelo dinamismo da
misericórdia. O próprio glossário temático foi então “inventado”, tendo o antigo
vocabulário hebraico sido traduzido para grego no Novo Testamento. Na verdade,
a justiça de Deus chama-se “misericórdia”. Quando o pecador peca, Deus não o
castiga logo, não o mata. Seguindo a metáfora da balança de dois pratos, se na
balança da justiça, que Deus utiliza, os pratos estão desequilibrados porque o
prato do homem cede ao peso do pecado, Deus coloca no prato do seu lado o amor,
o perdão, a misericórdia – o que redunda na justificação do pecador, não pelas
suas obras, mas pela misericórdia de Deus. Ora, Jesus, no Novo Testamento, não
veio revelar outro Deus, mas tornar mais evidente o seu modo de atuar, pouco
consentâneo com as “justiças” humanas. Segundo o apóstolo Paulo, Jesus, em sua
pessoa e atitude, é a “imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), do “Pai das misericórdias” (2Cor 1,3), “rico em misericórdia” (Ef 2,4). Jesus vem revelar a justiça, que se chama
misericórdia (Lc 4,18-19;
1,50.54.78). Por isso,
como fonte da misericórdia divina, comoveu-se face a todos os sofredores (Mc 1,41).
***
A justiça de Deus difere da justiça humana.
A justiça bíblica
não é confundível com a dos tribunais humanos (necessária e que deve ser bem administrada), nem com a justiça equitativa e
distributiva. A justiça do Deus bíblico faz que as pessoas sejam “justas”,
atuando de modo a agradarem a Deus e a realizarem em si aquela vida santa que
Deus pede, ou seja, fazer que, na balança divina, o prato correspondente à vontade
de Deus para cada um de nós fique equilibrado com o que nós fazemos. Assim,
Deus não faz distinção entre misericórdia e justiça. Tal distinção fazem-na os
homens. O Deus bíblico não exclui a justiça humana, antes a exige, mas esta só
se consegue em pleno mediante a justiça bíblica, que é fruto genuíno da
misericórdia e do amor de Deus. Por outro lado, leva a humanidade a realizar,
mais profunda e eficazmente, os diferentes tipos de justiça humana. Longe da
justiça de Deus, a justiça humana torna-se insuficiente e injusta. Por isso, Paulo
fala dos combates dos cristãos com as “armas de justiça” (Rm 6,13; cf 1Tm 6,12; 2Tm 4,7). Isto é, o cristão não é um homem
ou mulher de armas na mão – como acontece noutras religiões – mas deve, sim, levar
em todo o seu viver as armas de justiça:
realizar o projeto de Deus a seu respeito, como é revelado no Evangelho. Tal
justiça é a que Jesus prega aos fariseus, quando lhes aponta o facto de apenas
se interessarem pela aparência exterior das suas ações, por uma justiça e
santidade aparentes, enquanto, por dentro, procuram a mesquinhez de interesses:
colocam de lado o mais importante da Lei: fidelidade, misericórdia e justiça (Mt 23,23; vd Lc 10,37). Tal misericórdia e justiça
ressaltam na parábola do bom samaritano e nas dos “perdidos e achados”,
sobretudo do filho que regressa, do cap. 15 de Lucas.
***
Para Israel,
a justiça baseia-se na revelação fundamental que Deus lhe faz, assente na
aliança. A teologia da aliança é o núcleo da Bíblia:
“O Senhor, nosso Deus, concluiu uma aliança connosco no
Horeb. Não foi só com os nossos pais que o Senhor concluiu esta aliança, mas
connosco que estamos aqui todos vivos hoje” (Dt 5,2-3; vd 4,23; 9,9).
A aliança é a
consequência de uma escolha e iniciativa muito particular e gratuita de Deus. É
Deus que atesta a origem da eleição no seu amor e na fidelidade ao juramento
feito a nossos pais: Porque amou os teus
antepassados e escolheu a sua descendência depois deles...” (Dt 4,37; vd 7,7-8; 10,15). A justiça de Israel não é, pois, o
motivo da escolha divina, não é a recompensa pela sua justiça, mas uma
responsabilidade de “justiça” face aos outros povos, a fim de ser para eles o
exemplo, o protótipo de relação com Deus. A aliança é então a base da justiça
de Israel, uma vocação permanente à fidelidade de Deus e a resposta à sua
eleição. O Senhor não é justo apenas por dar a cada um o que lhe é devido, mas
por ter iniciado uma “relação de justiça”, na aliança, e por amar, alheio a
qualquer aceitação e reconhecimento, rejeição ou abandono. É certo que os
profetas entendem esta justiça à imagem do processo judicial. Porém, tratando-se
da aliança, o processo não se realiza nos tribunais, mas entre as duas partes
em causa. Deus, em vez de assumir a postura de juiz, surge como “justo”
inocente, que expõe a sua queixa em resultado da infidelidade de Israel. O
profeta Jeremias faz eco desta queixa ao afirmar:
“Assim fala o Senhor: Não se envaideça o sábio do seu saber, nem o forte da sua força, nem se
glorie o rico da sua riqueza! Aquele, porém, que se quiser gloriar, glorie-se
nisto: em ter entendimento e conhecer-me a mim, que Eu sou o Senhor, que exerço
a misericórdia, o direito e a justiça sobre a terra. Nisto me comprazo” (Jr
9,22-23).
É no uso da
misericórdia e do subsequente perdão que Deus manifesta, de modo especial, o
seu poder omnipotente. Esta ideia de Tomás de Aquino, transposta para a
Liturgia, mostra que a misericórdia divina não é um sinal de fraqueza, mas a suprema
qualidade da omnipotência de Deus. Por isso, a Igreja reza, numa das orações de
coleta mais antigas “Senhor, que dais a maior prova do vosso poder quando
perdoais e Vos compadeceis…” (Domingo XXVI, tempo comum).
Deus
permanecerá na história da humanidade como “Aquele que está presente, Aquele
que é próximo, providente, santo e misericordioso”. Paciente e misericordioso é o binómio adjetival que aparece
recorrentemente nos textos veterotestamentários para descrever a natureza de
Deus. A sua misericórdia (colocação do seu coração em sintonia
com cada um dos que sofrem) e sua “compaciência” ou compaixão
(capacidade de sofrer
com o homem sofredor)
encontram reflexo concreto em múltiplas ações da história da salvação, em que a
bondade divina prevalece sobre o castigo e a destruição. Nos Salmos, em
particular, sobressai recorrentemente esta grandeza da ação divina. A
misericórdia divina não é uma abstração, mas uma realidade pela qual Ele revela
efetiva e efetivamente o seu amor de pai e de mãe, que se comovem pelo próprio
filho até ao mais íntimo das suas vísceras de progenitura. É um amor verdadeiramente
visceral, proveniente do íntimo, qual
sentimento intenso e profundo, natural e interminável, tecido de ternura e
compaixão, de perdão e indulgência, de misericórdia e justiça – não na
perspetiva do inquisidor, mas no cuidado do íntimo e companheiro de todos os
momentos.
***
É
em nome deste binómio “misericórdia e justiça” que o Papa promete apresentar-se
ao Povo do México, nos próximos dias 12 a 18 de fevereiro, como “missionário da
misericórdia e da paz”, indo ao seu encontro para a confissão conjunta da fé em
Deus e compartilhar a verdade fundamental das nossas vidas: Deus quer-nos muito e ama-nos com um amor
infinito, muito acima dos nossos merecimentos (vd
videomensagem de 8 de fevereiro).
Será
a justiça empapada na misericórdia que trará a paz. Todos deveremos ser
misericordiosos, pacíficos e amantes da justiça porque
Ele é a misericórdia, a paz, e a justiça.
2016.02.08 –
Louro de Carvalho
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