Quando
o país se sentiu mergulhado na crise económica e financeira, no contexto do inevitável
alinhamento com a conjuntura internacional, e depois que os decisores políticos
enveredaram, sob a batuta europeia, pela via austeritária, os efeitos da crise,
que se fez global, sentiram-se gravemente por todo o lado. A maior parte da
população sofreu o empobrecimento enquanto uma fatia mínima dos cidadãos logrou
ver na circunstância uma privilegiante oportunidade única de autoencastelamento
num refastelado estatuto económico-social.
Alguns
grupos económicos, com o auxílio do Estado, que alguns consideravam falido,
cresceram. Veja-se o incremento dado ao ensino privado, mercê da transferência
de verbas do setor público, à luz do princípio da livre escolha, ou o
crescimento do setor privado da saúde mediante a celebração de acordos entre as
unidades de saúde privada e os subsistemas de saúde – alguns públicos como a
ADSE superavitária – a que se furtaram os hospitais públicos.
Inúmeras
empresas faliram, o desemprego aumentou em dimensão colossal; o estigma da
precariedade pairou sobre a maior parte da população ativa; centenas de
milhares de trabalhadores emigraram; aumentou abissalmente o número de
pensionistas (reformados, aposentados e jubilados) e as pensões sofreram graves
reduções; e muitos milhares ficaram na dependência das instituições de
beneficência para sobreviverem.
Desinvestiu-se
na educação, na saúde, na segurança social. As prestações sociais (no
desemprego, pensões, subsídios por doença, rendimento social de inserção) emagreceram em montantes e
tempo.
Os
efeitos da crise socioeconómica assumiram visibilidade nas escolas, nos
supermercados, nas empresas e serviços, na rua, nas coletividades, nos bancos
alimentares. Os bancos, embora sujeitos a testes de stresse e a operações de
recapitalização, deixaram de fazer chegar dinheiro à economia e alguns
tornaram-se vassalos de bancos maiores, sendo que outros pura e simplesmente se
eclipsaram ou ficaram como um peso pesado para o Estado.
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Cedo
a Comunicação Social deu conta da existência de um número significativo de
pessoas, sobretudo as marcadas pela idade, doenças crónicas e penúria de recursos
(nomeadamente
pessoas contempladas por baixíssimas pensões de velhice de doença ou de
desemprego) que se
viam na necessidade de cortar na alimentação e/ou na medicação. É certo que os
sucessivos governos fizeram um grande esforço na disciplina do medicamento,
quer promovendo a produção e venda dos medicamentos genéricos quer determinando
a prescrição médica por substância ativa e não pela designação comercial do
produto, deixando ao doente a capacidade de escolha. No entanto, muitos viram o
acesso à consulta e à medicação dificultado; e alguns morreram isolados.
Entretanto,
surgiram dois estudos que pretenderam uma abordagem aprofundada e sistemática dos
efeitos da austeridade na saúde.
Um foi dado a conhecer hoje, dia 25 de fevereiro, na RTP: três investigadores do Porto – Andreia Filipa Novo, Rui Alves Castro e Marcelo Sá Carvalho – deram corpo a um estudo, cuja publicação se aguarda, sobre o “impacto da austeridade na saúde”, tendo concluído que a instabilidade económica provocou, entre 2000 e 2010, mais fraturas no fémur, por via da osteoporose, referindo que a fratura do colo do fémur é uma das maiores causas da mortalidade.
Mais
dizem que “a falta de acesso a medicamentos e a diminuição do poder de compra
estão diretamente relacionados com o problema”.
Embora
se trate de um estudo que ainda não abrange o tempo mais pernicioso da
austeridade – de 2011 a 2015 – o mesmo releva para a reflexão dos cidadãos e
como marco de referência para a tomada de decisão de quem democraticamente é obrigado
a dirigir o rumo do país.
Diga-se
que um estudo que abrangesse o período da aplicação da austeridade como receita
plasmada num afolha de Excel provavelmente permitiria chegar a conclusões mais
gravosas, dada a aplicação cega da receita “custe o que custar” ou ainda além
da troika. Muito embora, durante esse período, se fizessem sentir os efeitos de
algumas políticas setoriais, como a da disciplinação do medicamento ou a do
envolvimento das autarquias e da chamada sociedade civil na solução de muitas
das situações de carência, houve aspetos de notória dificuldade, como: situações
de legionella, gripe A, hepatite C,
entupimento das urgências, rarefação dos médicos no serviço nacional de saúde,
precariedade no trabalho, isolamento crescente de membros das famílias.
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Também em
2013 a Associação Académica da Faculdade de Direito
de Lisboa publicou um trabalho sob o título “Os efeitos da austeridade na saúde da
população: evidência internacional e experiência portuguesa”, da
autoria dum grupo de investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade de
Lisboa: Carlos Matias Dias, Rita Carvalho da Fonseca, Teresa
Contreiras e José Pereira Miguel. No seu resumo, os
autores referem:
“A evidência disponível, em parte histórica, demonstra que a
austeridade em tempos de crise económica tem efeitos predominantemente
negativos sobre a saúde dos indivíduos e das populações que incluem aumentos na
mortalidade, morbilidade e fatores de risco, assim como diminuição no acesso e
utilização de cuidados de saúde. Alguns destes efeitos não são imediatos e
podem fazer-se sentir a médio prazo. Numa perspetiva de saúde pública, a
austeridade surge, assim, como parte do sistema complexo e ainda não totalmente
conhecido que explica porque é que algumas pessoas e algumas sociedades são
mais saudáveis do que outras. A austeridade influencia de forma complexa, os fatores
de risco, protetores e promotores do estado de saúde, assim como as
consequências dos problemas de saúde e a resposta organizada das sociedades,
consubstanciada nos sistemas de saúde de cada país.”
O site do Instituto
Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge tem acessível um PowerPoint organizado pelos referidos investigadores. Este
instrumento de apresentação do estudo releva que a “austeridade surge como um
elemento fundamental a considerar no planeamento e organização das respostas da
sociedade com vista à promoção,
prevenção e melhoria do estado de saúde da população”.
Num primeiro momento, põem em evidência a dupla “austeridade
e saúde pública, tentando definir o “Estado de Saúde da População” e elencando
os “determinantes sociais da saúde”, bem como as “políticas adotadas na
generalidade dos setores”, nomeadamente no da “saúde” e no respeitante a “todas
as políticas públicas” que possam repercutir-se na saúde ou desta receber
significativa influência.
Depois, sob a asserção de que a “austeridade influencia de
forma complexa e não completamente conhecida o estado de saúde”, abordam os
“fatores de risco” e os “fatores de proteção e promoção”; as “consequências dos
problemas de saúde existentes”; e a “capacidade de resposta dos sistemas de
saúde”.
Salientam
que “estudos com análise de dados individuais reportam essencialmente efeitos
negativos”, ao passo que “estudos com análise de dados agregados apresentam
efeitos negativos a curto e médio prazo”, reportando, no entanto, “alguns efeitos positivos a curto prazo”.
Dos “efeitos negativos a curto e médio prazo”, selecionam: a
“alteração das condições de acesso a cuidados de saúde”; o aumento dos
suicídios”; o “aumento de consumo de álcool e de substâncias ilícitas”; a
“doença mental”; e os “surtos de doenças transmissíveis”.
Dos “efeitos positivos a curto prazo reportados em situações de crise anteriores”, destacam; a “redução
da mortalidade por acidentes de viação”; a “alteração nos estilos de vida dos
grandes fumadores e nos grandes obesos; e o “aumento da atividade física”. No
entanto, sabemos que a obesidade infantil parece ter vindo para ficar.
Por outro lado, a política austeritária tem como efeito
sistémico a “redução de despesa pública”, que se materializa na “redução de
serviços e recursos financeiros, humanos e materiais”, na “introdução (reintrodução ou aumento) de
taxas de acesso”, no “aumento do pagamento das despesas de saúde pelas famílias”,
na “reorganização do setor prestador de cuidados”, na “renegociação da despesa
com medicamentos e outros bens e serviços” e na “alteração do quadro normativo
do setor da saúde”.
Depois, a “investigação sobre os fatores determinantes e de
confundimento face aos efeitos das medidas de austeridade” sublinha dados como
os da morbilidade e mortalidade, em franco aumento; a “investigação sobre os
mecanismos de reposta individuais e da população (epidemiologia da resiliência)”
releva, por um lado a “capacidade de autodefesa” de uma grande franja da
população e a corrida a apoios e, por outro, a desistência de muitos; e a “monitorização
dos efeitos a curto, médio e longo prazo em setores para além da saúde (da educação, da proteção social, produtivo,…)” evidencia a visibilidade que a crise projeta na escola e
na autarquia, levando-as a um esforço suplementar, e nas empresas, que produzem
menos e pagam menos, embora os custos de produção não baixem.
Em suma, o estudo conclui que os “efeitos da austeridade na
saúde dos indivíduos e das populações parecem ser predominantemente negativos”,
pelo que há “necessidade de desenvolver sistemas de registo e recolha de
informação adequados” e de “monitorizar os efeitos das medidas de austeridade
na saúde da população para além do período de austeridade”.
Por outro lado, há que estabelecer uma “investigação mais
aprofundada sobre os mecanismos de resiliência dos indivíduos e das populações”
e definir um conjunto de “intervenções planeadas, organizadas e fundamentadas
em evidência que amenizem os efeitos negativos a curto e médio prazo em
idênticas situações futuras”.
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Nada
que não se esperasse, mas que robora a força das vozes que protestavam contra a
aplicação da receita prescrita pela política austeritária sob a égide da
inevitabilidade, mas sem ter em conta a realidade sobre que iam recaindo
inexoravelmente as células da folha de Excel do receptivo monitor/inspetor.
Razão
tinha o atual Presidente da Comissão Europeia quando declarou que as
autoridades europeias feriram a dignidade das populações dos países sujeitos a
programas de resgate ou o seu assessor ao clamar que tinham sido impostos
tantos sacrifícios como muito mais dor que resultados.
Ademais,
os dados recentes da Comunicação Social sobre depressões, tragédias de
assassinatos e suicídios e casos de abandono bem mostram como é urgente
inverter a situação.
2016.02.25 –
Louro de Carvalho
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