segunda-feira, 20 de julho de 2009

Segui a Deus, mesmo quando Ele me repeliu

Carta do Judeu do Gueto de Varsóvia que, perante as atrocidades cometidas contra os judeus, durante a última grande guerra, alguém a redigiu colocando-a dentro de uma garrafa vazia.

«Algo de muito surpreendente acontece hoje no mundo. Este é o tempo em que o Omnipotente afasta o seu rosto daqueles que lhe suplicam. Deus escondeu ao mundo a sua face; por isso, os homens estão abandonados às suas piores paixões selvagens. Num tempo em que estas paixões dominam o mundo, é natural que as primeiras vítimas sejam precisamente aqueles que conservaram vivo o sentido do divino e do puro. Isto pode não ser consolador, mas o destino do nosso povo é estabelecido não por leis terrenas, mas por leis ultraterrenas. Aquele que empenha a sua fé nestes acontecimentos deve ver neles uma parte da grandiosa realização dos planos divinos, perante os quais as tragédias humanas não têm nenhum significado. Não procurarei salvar-me nem tentarei fugir daqui. Meterei esta carta na garrafa vazia e escondê-la-ei entre as pedras desta janela entaipada até meio. Se, mais tarde, alguém a encontrar, talvez possa compreender os sentimentos de um judeu, de um destes milhões de judeus que foram mortos, um judeu abandonado por Deus em quem acreditava muito intensamente.

Creio no Deus de Israel, embora ele tenha feito de tudo para arrasar a minha fé nele. As minhas relações com Ele já não são as de um servo diante do seu senhor, mas as de um discípulo perante o seu mestre. Creio nas suas leis, amo-o. E, embora me tenha enganado em relação a ela, continuarei a adorar a sua lei. Dizes que pecámos: certamente que pecámos e também admito que sejamos punidos por isso. Contudo, gostaria que me dissesses se há algum pecado na terra que mereça tal castigo. Digo-te isto, ó meu Deus, porque creio em ti mais do que nunca, porque sei que és o meu Deus e não o Deus daqueles, cujos actos são o fruto horrível da sua impiedade militante.

Não posso louvar-te pelos actos que toleras, mas bendigo-te e louvo-te pela tua Majestade que inspira temor. A tua Majestade deve ser verdadeiramente imensa para que tudo o que acontece neste tempo não te impressione. Agora, a morte já não pode esperar mais. Tenho de deixar de escrever. Minuto a minuto, o tiro das espingardas, nos andares de cima, torna-se cada vez mais fraco. Neste momento, caem os últimos defensores do nosso refúgio e, com eles, cai a grande, a bela Varsóvia judaica que teme a Deus. O Sol põe-se e eu te agradeço, ó Deus, porque nunca mais o verei surgir. Raios vermelhos chovem da janela: o pedacinho de céu, que posso ver, é flamejante e fluido como um fluxo de sangue. Dentro de uma hora, no máximo, estarei junto da minha mulher, dos meus filhos e dos melhores dos filhos do meu povo, num mundo melhor, em que as dúvidas já não dominarão e Deus será o único soberano.

Morro sereno, mas não satisfeito; como um homem abatido, mas não desesperado; crente, mas não suplicante; amando a Deus, mas sem dizer cegamente: Ámen. Segui a Deus, mesmo quando Ele me repeliu. Cumpri o seu mandamento mesmo quando, para premiar a minha observância, Ele me castigava. Amei-o, amava-o e amo-o ainda, embora me tenha abaixado até ao chão, me tenha torturado até à morte, me tenha reduzido à vergonha e ao escárnio. Podes torturar-me até à morte, acreditarei sempre em ti; amar-te-ei sempre, mesmo que não queiras. E estas são as minhas últimas palavras, meu Deus de cólera: Não conseguirás fazer com que te renegue.

Tentaste de tudo para fazer-me cair na dúvida, mas eu morro como vivi: numa fé inabalável em ti. Louvado seja o Deus dos mortos, o Deus da vingança, o Deus da verdade e da fé que imediatamente mostrará os fundamentos com a sua voz omnipotente. Shema' Israel, Adonai Elohenu, Adonai echad! Escuta, Israel, o Senhor é o nosso Deus, o Senhor é um!»
In ecclesia

1 comentário:

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.