Bento XVI publicou com data de 29 de Junho, solenidade litúrgica dos apóstolos Pedro e Paulo – tidos como verdadeiras “colunas da Fé” – a sua encíclica de temática social “Caritas in Veritate”. Por mais paradoxal que pareça, surge na sequência das duas primeiras “Deus Caritas Est” e “Spe Salvi”.
Na primeira, o papa afirma, num contexto de aplicação do amor ao próximo, da mesma raiz que o amor a Deus, que “a doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano”. E, reconhecendo não constituir “tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina, quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal”. E, assegurando que “a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração” e “uma tarefa humana primária”, a que a “Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis”
Na segunda, à luz do princípio de que “toda a acção séria e recta do homem é esperança em acto”, o pontífice adverte: “Se não podemos esperar mais do que é realmente alcançável de cada vez e de quanto nos seja possível oferecerem as autoridades políticas e económicas, a nossa vida arrisca-se a ficar bem depressa sem esperança”.
Porém a “Caritas in Veritate”, trata expressamente a doutrina social da Igreja. E, embora se abrigue na linha de rumo traçada pelas encíclicas sociais de seus predecessores, Bento XVI, tendo em conta a situação crítica do mundo global em termos financeiros, económicos, culturais e sociais, reequaciona os fundamentos desta momentosa vertente da doutrina da Igreja, numa perspectiva refundante. Começa por enunciar o princípio de base: “A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira”. E, declarando, sem margem para dúvidas, que “a caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja”, garante que “o amor — caritas — é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz”, e “o princípio não só das micro relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro relações como são os relacionamentos sociais, económicos, políticos”. Ora isto tem consequências. E o papa não se inibe de as apontar. É preciso construir convicções: “a verdade há-de ser procurada, encontrada e expressa na economia da caridade”, que “por sua vez há-de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade”, prestando-se assim “um serviço à caridade, iluminada pela verdade” contribuindo “para acreditar a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta”. É necessário ler o mundo: a rarefacção da natalidade reduziu em grande parte as fontes de receita do orçamento dos Estados e da segurança social, o que implicou a excessiva oneração fiscal; o império dos habilidosos, a desmesurada procura do lucro, a inconsciência da relação de trabalho e da relação social – resultantes da falta de ética pessoal e colectiva – criaram um estado de crise que abalou o mundo inteiro, mesmo o dos ricos, de que emana, ao lado do oportunismo de uns tantos, o sofrimento excessivo e desnecessário de muitos. É imperioso criar uma nova ordem mundial, já não somente económica ou social ou política, mas global, ao serviço da justiça e da fraternidade. E este Servus Servorum Dei, propõe uma autoridade mundial que regule, modere e controle a globalização, o que implica uma renovação da mentalidade das nações unidas.
Não é de ânimo leve que a pena de alguns especialistas de renome, independentemente do êxito que venha ou não venha a obter, desenhou a ideia da proposta de Bento XVI para o prémio Nobel da economia. É que o documento ora dado à luz – de colagem à doutrina trinitária, de construção espessa, de leitura paciente, de tonalidade mordaz, de estilo fino – sem negar a tradição, é um instrumento inovador, devidamente fundamentado, detentor de uma correcta leitura do espectro mundial e portador de consequências, que deve ser tido em conta nas operações de estudo, planeamento, gestão e avaliação.
Bem certo está o Padre Tolentino Mendonça, quando o rotula de “manual para o desassossego”, sobretudo – digo eu – para quem tem responsabilidades académicas, políticas, económicas, sociais e pastorais.
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.