José Tolentino Mendonça (19-07-2016)
quinta-feira, 21 de julho de 2016
O VERBO REPOUSAR
Há um curioso conto da sabedoria islâmica que fala de um homem que perde uma chave dentro de casa. Porém, como no exterior há mais luz e se vê melhor, em vez de a procurar no sítio onde a perdeu, vem colocar-se confortavelmente a buscá-la ali. Parece bizarro, mas acontece-nos a todos com frequência: buscamos onde julgamos ser mais fácil e não necessariamente no sítio onde seria razoável que o fizéssemos. Por exemplo: porque resistimos tanto a parar e a encontrar formas de repouso que nos devolvam a nós próprios? Por uma razão simples: achamos que o ativismo descomplica e a quietude nos atrasa, abrindo o tampão das nossas motivações mais profundas. O movimento parece mais fácil: ele preenche o tempo, mantém-nos ocupados dentro dos seus círculos em vertigem, enquanto o repouso tantas vezes começa com a sensação de um esvaziamento, surpreendente, incómodo, duro de lidar. Por isso fugimos do repouso verdadeiro, onde o encontro connosco próprios é inescusável. Ocorre amiúde a pessoas sobrecarregadas de atividade que decidem finalmente fazer um tempo de paragem ou de retiro. Não raro, a primeira experiência por que passam é o desejo de escapar dali, considerando que o retiro foi uma má opção, pois o que começam por sentir é um desamparo e uma pobreza, como se estivessem, de repente, sozinhos a lutar com a sua noite. E tinham colocado expectativas tão altas em relação àquele tempo de pausa. A pressão ofegante parece, assim, mais útil: dá-nos o sentido, mesmo se irreal, de que alguma coisa está a acontecer. Achamos que somos nós que corremos e a paisagem está parada. Ainda que seja tudo ao contrário: a paisagem desloca-se numa aceleração imparável e nós permanecemos fixos sem sair do lugar, cada vez mais presos ao ponto onde nos encontramos. O ritmo ininterrupto das nossas jornadas, embora nos atropele e progressivamente nos torne estrangeiros de nós mesmos, como que nos empurra para a frente — e isso é bom; como que nos coloniza por inteiro — e consideramos isso, por fim, até tranquilizante, pois adia o confronto com a nossa existência desvitalizada. Deste modo, o motivo por que desaprendemos a arte do repouso não anda assim tão longe da sabedoria refletida pela pequena história da tradição islâmica.
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