No contexto do tempo e do lugar, a família do Florindo e da Abília era abastada, unida e alegre. Foi a primeira família da terra onde entrou um gira-discos e a primeira a possuir um automóvel. Do seu casamento nasceram quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas.
Tirando o anoitecer em que daquele lar saía o murmúrio da oração do terço e o merecido descanso nocturno solicitado pelo árduo trabalho diário, os restantes momentos do dia eram de boa disposição naquela família.
- Parece o palácio do riso! - comentavam alguns que ouviam as gargalhadas ao passar na rua.
- É a boa consciência que os põe assim! - sentenciavam outros.
Havia ali algo que saía dos parâmetros normais. Muito unidos, mas com imenso respeito pela liberdade de cada um, o que provocava interrogações ao comportamento estandartizado da terra.
- A tua mãe deixa-te sair sozinha com o teu namorado? - perguntava a velha da Rua dos Alguidares à Rita, sempre atenta aos desvios dos mais novos, porque "o perigo está em todo o lado".
- Ó tia Lúcia, se eu não me guardar, ninguém me guarda! Esteja descansada que eu sei o que faço...
Entre os quatro irmãos, a Rita era a mais dada, a mais respeitada, a mais alegre e a mais disponível para ajudar.
Era preciso dar injecções em pessoas ou nos animais? Era à Rita que se recorria. Era preciso começar os cantos na Missa? Era a Rita que o fazia. Havia um casamento ou uma festa na aldeia? Era à Rita que se pedia que orientasse as coisas.
Ela era a "filha do povo", o "ai-Jesus" da povoação. Podiam estar os homens na taberna, a jogar, a beber e a conversar, mas se a Rita entrava para dar algum recado ou efectuar compras, os chapéus desciam nas cabeças, ouvindo-se mal fosse avistada: "Senhores, cuidado, vem aí a Ritinha!" E as línguas travavam a fundo para não sujar a "nossa linda menina".
Ao domingo à tarde, os filhos da Abília animavam a festa na eira. O mais velho tocava acordeão, onde rufavam as "modinhas" que o povo tanto apreciava. A Rita não parava um instante. Ora se juntava aos irmãos a cantar, ora redopiava pela eira numa dança elegante e irrepreensível.
Nunca o festival acabava, já Sol entradote, sem que o povo lhe pedisse:
- Menina, um fadinho da Amália! E a voz saía, profunda, sentida, linda, sãzinha. O povo estremecia e umas lágrimas comovidas banhavam as caras enrugada das velhas, para tudo terminar com uma acalorada e calorosa salva de palmas.
Se no calor da festa, chegava aos seus ouvidos algum palavrão de algum rapaz mas inadvertido, a Rita aparecia:
- Zé, doem-te os dentes!?
- Desculpa, Rita, foi sem querer...
Nos momentos mais lancinantes da vida, era a ela que as pessoas se dirigiam.
- Pai, é preciso que pegue no carro e vá levar a Ana Biscoiteira ao hospital.
- Mas, Rita, o trabalho? E a despesa com a gasolina?
- Pai, desta vida só levamos o que damos, nunca o que temos!
E Florindo atirava com a sachola para o lado e lá ia à garagem pegar no carro para prestar auxílio à doente.
Pela estrada de terra batida, esburacada pela inclemência do Inverno ou pelos chiantes carros de bois, o pobre do veículo parecia um saltimbanco, fazendo o estômago vir às portas da boca várias vezes e pondo a cabeça a jogar ping-pong com o tecto. O que levava sempre a Rira a exclamar quando chegavam ao hospital:
- Se ainda não morreu da doença nem das aflições do carro, de certeza que tem cura!
Uma coisa a Rita não suportava: falar ou ouvir falar mal de alguém.
- Preciso dos ouvidos e da língua para coisas bem mais importantes! - comentava com ar sério sempre que alguém a sondava para a má língua.
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