quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O Papa e a Guerra Justa. Volumes de teoria e uma frase de realidade


O Papa tem falado frequentemente de guerra desde que foi eleito. Por exemplo, tem tido a clarividência para dizer – e bem – que estamos a viver uma “Terceira Guerra Mundial às prestações”, apesar de na Europa central e ocidental estarmos no maior período de paz da nossa história.

Tem também insistido na necessidade da paz e apelado ao fim de múltiplos conflitos em todo o mundo, incluindo os que já foram esquecidos pelo resto dos líderes mundiais.

Mas o Papa tem sido também criticado por estar a pôr em causa a tradição cristã da Teoria da Guerra Justa. Na encíclica “Fratelli Tutti”, Francisco diz o seguinte:

Nas últimas décadas, todas as guerras pretenderam ter uma ‘justificação’. O Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma legítima defesa por meio da força militar, o que supõe demonstrar a existência de algumas ‘condições rigorosas de legitimidade moral’. Mas cai-se facilmente numa interpretação demasiado larga deste possível direito. Assim, pretende-se indevidamente justificar inclusive ataques ‘preventivos’ ou ações bélicas que dificilmente não acarretem ‘males e desordens mais graves do que o mal a eliminar’. A questão é que, a partir do desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas e das enormes e crescentes possibilidades que oferecem as novas tecnologias, conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes. É verdade que ‘nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem’. Assim, já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Perante esta realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar de uma possível ‘guerra justa’. Nunca mais a guerra!

Segundo a tradição cristã os critérios para que uma guerra seja considerada justa são as seguintes:

  • Deve haver a certeza de uma ameaça duradora e grave por parte da entidade à qual se vai declarar guerra
  • Todos os outros meios para pôr fim ao conflito devem ter sido esgotados
  • Deve existir uma perspectiva séria de sucesso
  • O uso da força armada não deve produzir um mal maior do que aquele que pretende eliminar

A forma mais simples de entender o argumento do Papa Francisco é de que na era das armas nucleares estas condições nunca se cumprem, porque o risco de causar um mal maior do que aquele que se pretende evitar estão sempre presentes.

Francisco tem sido muito criticado por esta posição. Parece-me justa e equilibrada esta apreciação do jesuíta Francisco Sassetti da Mota, numa recensão que aparece nas páginas finais da edição de Novembro da revista Brotéria, a uma obra que reúne textos soltos do Papa sobre a temática da guerra:

É discutível que tudo o que o Papa Francisco afirma seja tecnicamente rigoroso. (…) o enamoramento por uma linguagem radicalmente pacifista é ingénuo, pouco fundado na tradição cristã e em muitos casos perigoso para o inocente oprimido. Mas essa falta de rigor em alguns pontos não pode condenar o que o Papa Francisco tem para dizer de mais fundamental: a violência perturba a ordem desejada por Deus.

Tem-se pensado muito nesta problemática desde que começou a guerra na Ucrânia. Em primeiro lugar, quantos de nós, quando a guerra começou, acreditavam que a Ucrânia tinha sérias perspectivas de sucesso no campo de batalha? Desse ponto de vista, devíamos ter defendido a rendição imediata. Uma das frases mais significativas desta década foi “não preciso de boleia, preciso de munições”, e com isso começou a desenhar-se o fantástico desempenho das forças armadas ucranianas que estão cada vez mais próximas de libertar o seu território todo.  

O Papa tem sido incansável a falar da guerra na Ucrânia, criticando sem margens para dúvidas a invasão russa. Tem sido por vezes criticado por recordar que do lado russo também há sofrimento, por exemplo, ou por apelar a negociações quando os russos não revelam qualquer intenção de devolver à Ucrânia a soberania sobre os territórios ocupados. Mas permaneceu sempre a dúvida. O Papa acredita que os ucranianos devem estar a fazer valer a sua posição pelo uso da força? Dito de forma mais simples: O ucraniano que parte para combater os russos nos territórios ocupados está a fazer bem, ou mal?

Depois de textos suficientes para encher um volume sobre a guerra e a paz, o Papa disse finalmente uma frase que parece dar-nos a resposta que procuramos. Na carta escrita ao povo ucraniano, por ocasião dos nove meses da guerra, Francisco diz: “Penso em vós, jovens, que, para defender corajosamente a vossa pátria, tivestes de pegar em armas em vez dos sonhos que nutríeis para o futuro”.

Reparem na escolha da palavra, nada acidental. “Tivestes”. Não “optastes”, não “quisestes”, mas “tivestes”. E mais, esse pegar em armas não é uma mera fatalidade, é um acto de coragem. 

É numa situação como a guerra da Ucrânia que toda a teoria sobre guerra, paz, justiça e injustiça cai por terra e temos de nos confrontar com a realidade. Uma nação poderosa, liderada por um tirano, invadiu uma terra estrangeira, sob falso pretexto, procurando subjugá-la, eliminar a cultura dos seus habitantes, espalhando terror, tragédia e morte. Perante isto não há teorias bonitas sobre espadas convertidas em arados, não há cálculos frios sobre se a defesa tem probabilidades de sucesso ou não, e daí ser ou não lícita. O que há é uma obrigação moral de defender o inocente, de travar o assassino, de fazer frente à injustiça.

Esteve bem o Papa em reconhecer a força desta realidade e de perceber quando escreve aos ucranianos – que tanto tem apoiado, e por quem tanto tem rezado – que eles precisam tanto de lições de guerra justa como precisam de boleias.

Fonte: aqui

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