A
frase é referida pelo padre Adolfo Nicolás, prepósito-geral da companhia de
Jesus, em entrevista a Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, no passado dia 8 de outubro, e
postada em [http://www.ihu.unisinos.br/noticias/536058-e-preciso-ouvir-o-mundo-senao-o-mundo-nao-nos-ouvira-entrevista-com-adolfo-nicola, acedido a 16-10], com tradução de Moisés Sbardelotto.
E
a exclamação transcrita em epígrafe integra um quadro caricatural que o
entrevistado viu em Espanha e que representa um padre desesperado, com as mãos na cabeça: “Que horror, temos um papa que acredita
no Evangelho!”. A caricatura espelha bem a tensão existente entre a linha do
Papa argentino, a da refontalização necessária da Igreja e aplicação das
atitudes evangélicas aos tempos e homens de hoje nos diversos recantos do mundo,
e a atitude conservadora da defesa de uma Igreja que acumulou pelos séculos
todo um complexo de tesouros de coisas novas e velhas e que pretende tornar-se
equipolente ao denominado “depósito da fé”.
O
Papa quis e pediu que falassem claro, com liberdade e franqueza, na escuta
daquilo que o Espírito tem a dizer à Igreja. E falaram os bispos, os cardeais,
os peritos e os casais convidados. Produziram um relatório intercalar sobre os
assuntos discutidos na primeira semana dos trabalhos do Sínodo.
Uns,
agora, dizem que o relatório não corresponde à verdade; outros clamam que não
reflete o pensamento e a posição do conjunto dos padres sinodais; outros
levaram a mal o facto de o terem conhecido pela comunicação social (não
apreciando a linha de transparência sinodal e vaticana); e outros ainda se
queixam de que não foram tidas em conta as vozes dos tidos por mais
conservadores. Por seu turno, o grupo de padres sinodais próximos de quem
elaborou o relatório explica que se trata de um mero documento de trabalho, que
tem em vista fazer o ponto de situação das matérias discutidas – relatio disceptationum (relatório dos debates) – ou dar conta do
andamento dos trabalhos da assembleia do sínodo, muito longe de conclusões
finais, faltando ainda percorrer metade do percurso sinodal. Do sínodo há de
surgir um relatório final com sugestões de decisão para o Santo Padre
considerar com inteira liberdade. Por outro lado, deve ter-se em conta que, a
seguir a esta assembleia de 2014, outra está convocada para daqui a um ano, a
qual se destina a aprofundar as matérias ora debatidas e a reexaminar nas
igrejas locais, com base no aludido relatório final, e a oferecer a resposta
doutrinal e pastoral aos problemas suscitados pelo mundo (que “é preciso
ouvir”, senão “não nos ouvirá”) e assumidos no debate.
Ninguém,
por menos habituado que esteja ao fenómeno, deve escandalizar-se com os
momentos de tensão, mesmo quando o cardeal Müller, o Prefeito da Congregação da
Doutrina da Fé, disser e tornar a dizer que o relatório é uma vergonha. Aquilo
que os crentes devem aceitar é o produto final dos concílios e dos sínodos –
depois de aceite e mandado publicar pelo Sumo Pontífice. Não é cada ponto de
discussão nem a forma do debate que fará doutrina ou norma pastoral. Todos os
concílios foram palco de acesas discussões e lugar de desemboco de grandes
lições de teologia. Foi assim já no Concílio de Jerusalém, como se pode ler no
livro dos primórdios da vida da Igreja nascente, o livro dos Atos dos Apóstolos (15,6-29).
Foi
a grande assembleia dos líderes das comunidades cristãs, em Jerusalém, que
discutiu a questão da necessidade de impor ou não a circuncisão aos cristãos de
proveniência pagã. Quando o Evangelho foi anunciado aos não
judeus e estes fizeram a sua opção de fé em Jesus Cristo e, depois
de batizados, passavam a conviver com os cristãos de
origem judaica, que eram circuncidados, surgia o problema da desigualdade de
situações perante a Lei de Moisés. Alguns dos cristãos provenientes do judaísmo
entendiam que os gentios que se tornassem cristãos precisavam da circuncisão.
Por isso, se desencadeou a magna reunião de Jerusalém para decidir. Entre os
presentes, são mencionados: Paulo, Barnabé, Tiago, Simão, os apóstolos e
presbíteros.
A
fórmula da declaração da decisão tomada é usada até hoje nas decisões
conciliares: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós......” (cf. At 15,28): “De facto, pareceu bem ao
Espírito Santo e a nós não vos impor nenhum outro peso, além destas coisas
necessárias: que vos abstenhais das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das
carnes sufocadas e das uniões ilegítimas. Fareis bem preservando-vos destas
coisas. Passai bem.” (At 15,23-29).
Ora, o Papa crê no Evangelho da
misericórdia, e bem: “vai em paz e não tornes a pecar” (Jo 8,8); “a
tua fé te salvou, vai em paz” (Mc 5,34; Lc
17,19); “em verdade vos digo que
os publicanos e as meretrizes entrarão primeiro do que vós no reino de Deus” (Mt 21,31); haverá
mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove
justos que não precisam arrepender-se (Lc 15,7). Mas
este evangelho também nos dá conta de disputas elucidativas. Leia-se, por
exemplo: Mt 18,1-5; Mc 9,33-37; Lc 7,36-50; 9,54;15,25-32; Jo 7,25-53. E o que
é de aceitar é a conclusão formulada por Jesus ou sob a sua autoridade.
A pari, seria
bom que os padres sinodais cressem, com o Papa, ao menos no Livro dos Atos dos Apóstolos, onde se
veem sérias discussões, a presença da Mãe de Jesus, eleições, união, partilha
de bens (por entrega direta aos apóstolos ou por coleta), ensino, oração,
pregação, “Fração do Pão”, assistência às mesas, martírio e conclusões – tudo
sob a assistência do Espírito. Por outro lado, o Livro dos Atos compendia a pregação de Pedro, que assume o
essencial do quérigma, expande o anúncio da Boa Nova aos gentios, testemunha a
unidade, a solidariedade e o martírio, bem como todo o furor missionário de
Paulo e companheiros.
***
Voltando
a Adolfo Nicolás, cuja entrevista é um comentário ao decurso dos trabalhos
sinodais, o conhecido como “papa negro” começa por assentir que o
sínodo pode, segundo a intenção papal, ser lido como o cumprimento do
Concílio Vaticano II: “Há
muitas forças que se afastaram um pouco, distantes do modo de pensar das
pessoas, e Francisco está
ciente disso”. Por isso, “quer que o Concílio seja uma realidade e não haja mais
esse para a frente e para trás (…), mas que a Igreja vá em frente, porque a
humanidade vai em frente e não se pode esperar”. E assegura que, tal como o
Pontífice citou o Concílio duas vezes na homilia de abertura do Sínodo, também nas apresentações
dos Padres sinodais recorrem as referências conciliares.
Assim,
o jesuíta-mor acredita que se trata de um retorno muito sólido ao Concílio. E
explicita o seu pensamento: fala-se
da Igreja, de estarmos num mundo imperfeito, da luta das pessoas, dos problemas
das famílias e dos matrimónios; e veem-se pastores preocupados com a situação
real, não com ideias abstratas. A questão já não reside no modo de comunicar ou
forçar as pessoas a seguir uma vida ou outra, mas como escutar.
Embora haja muitas resistências (ampliadas por boatos), parece que
as situações mais problemáticas estarão a ser enquadradas em termos da lei da
gradualidade, segundo a qual, “é preciso ser positivo e ver as coisas boas,
mesmo que a forma não seja perfeita”, não se podendo buscar apenas o perfeito
ou nada”. Pelos vistos, o Papa segue a linha inaciana do crescimento gradual,
não repentino (“o mundo não é preto e branco”). Assim, embora não se tenha
ouvido isto na aula sinodal, “é melhor um casal que se quer bem do que um casal
em que não há amor, não há nada, mesmo que tenham sido completados todos os
ritos da Igreja”. Nicolás conta que, no tempo em que estava na Ásia, “sempre
ouvia repetir que, para a mentalidade ocidental, europeia, o perfectum é quando tudo é perfeito; ao invés, se
houver um defeito qualquer, já não é bom, é malum”. E contrapõe que, “se há algo de bom que pode
crescer, é preciso alimentá-lo, alimentar a vida em todos os campos”.
E
abona a sua posição com a asserção do cardeal Martini, que poderia constituir
um grande contributo para o sínodo – “a pergunta sobre se os
divorciados podem fazer a comunhão deveria ser invertida: como a Igreja pode chegar a ajudá-los, com a força dos sacramentos?”.
Não
pode continuar a suceder que se tire um remédio a quem mais dele precisa: quem
chegou a divorciar-se terá sofrido dificuldades, sofrimentos… e depois recebe a
marginalização.
E não é necessário mudar a doutrina: “o problema não é
doutrinal, mas de acompanhamento”. Os nossos princípios vêm daquilo que Cristo
proclamou. “No entanto, como alguns na Aula explicaram muito bem, sempre há um
espaço para a interpretação, e esse espaço é pastoral. Os exegetas fazem um
grande serviço à Igreja, mas disseram a sua palavra e estão um pouco exaustos.
A questão continua sendo pastoral. Não se trata de redefinir nada, mas de
encontrar uma linguagem, uma experiência diferente”.
O Papa vem advertindo: não carreguem sobre as costas das pessoas
“pesos insuportáveis”(cf Mt 23,4). É preciso criar uma linha de maior abertura, flexibilidade:
“não falar de princípios, mas encontrar a realidade, acompanhar as pessoas”. Estar à escuta do Espírito “é toda a vida inaciana”. A Inquisição não
ficou contente com Santo Inácio de Loyola, “examinaram-no oito vezes”. Quem
ouve o Espírito não está vinculado a normas dos homens. Os inquisidores “viam
um homem livre”, o que não era bom. O Espírito sopra onde quer e quem ouve a
sua voz, mas não sabe donde vem nem para onde vai (cf Jo 3,8). E isso dá uma enorme
liberdade.
***
Sabe-se
agora que a assembleia, embora ainda marcada por
perplexidades no seio dos círculos menores ou grupos linguísticos, concluiu
revisão do relatório intercalar e vai publicar todas as propostas – que vão
manter a dialética entre a linha da doutrina e encorajamento às famílias
cristãs e apostólicas e a linha da misericórdia a aproximação às situações
problemáticas, não assumíveis doutrinalmente, mas profundamente humanas. O
cardeal arcebispo de Viena D. Christoph Schönborn disse que o Sínodo tem
procurado “acompanhar” a história das pessoas no momento atual, seguindo as
indicações do Papa: ‘não julgar, acompanhar’ a história da família”, uma forma
de pensar que não é “relativismo”.
Embora o respeito pela pessoa não signifique aceitação de todos os
comportamentos humanos, o arcebispo de Viena, mostrando-se “muito
impressionado” pelo interesse mediático que esta assembleia sinodal provocou,
defendeu a importância de “um alargamento da visão da família” e de ver o seu
“papel fundamental”, para lá das “questões morais”. O Papa, segundo as palavras
de Schönborn, não pediu para ver “tudo o que não
funciona” na família, mas quis, “antes de tudo, mostrar a beleza e a
necessidade vital da família”. Assim, convidou-nos a ter um olhar atento sobre
a realidade”.
Por seu turno, o porta-voz do Vaticano, padre Lombardi, confessou aos
jornalistas que a decisão de publicar as propostas dos diferentes grupos
linguísticos revela “um caminho de abertura e transparência”. As ‘centenas’ de
propostas e as mais de 260 intervenções nas sessões gerais, durante a primeira
semana, levarão à publicação do chamado ‘relatório do Sínodo’, documento
conclusivo da assembleia extraordinária convocada pelo Papa – documento cujo texto
final dificilmente será conhecido ou publicado no sábado, mas que será objeto
de reflexão nas Igrejas locais, com vista aos trabalhos do próximo sínodo dos
bispos.
O diretor da sala de imprensa da Santa Sé revelou, ainda, que o
Papa reforçou a equipa de redação deste relatório final com a nomeação do
cardeal sul-africano D. Wilfrid Fox Napier e do arcebispo australiano D. Denis
Hart. Estes juntam-se a outros seis responsáveis nomeados anteriormente pelo
Papa – os cardeais Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a
Cultura, e Donald W. Wuerl, arcebispo de Washington (EUA); D. Victor Manuel
Fernández, reitor da Pontifícia Universidade Católica da Argentina; D. Carlos
Aguiar Retes, bispo de Tlalneplanta, no México, e presidente do CELAM –
Conselho Episcopal Latino-Americano; D. Peter Kang U-Il, bispo de Cheju e
presidente da Conferência Episcopal da Coreia; e o padre Adolfo Nicolás, prepósito-geral
da Companhia de Jesus.
O Vaticano vai publicar ainda a tradicional mensagem final da
assembleia sinodal, este sábado, da responsabilidade de outra equipa de
redatores, após ter sido aprovada pelos participantes.
***
Nada se oculta. Vêm à tona as perplexidades, as hesitações, os
maus humores, a doutrina, tal como as esperanças, as misericórdias, a
magnanimidade de Deus e a sua compaixão pelos dramas dos seus filhos – os
pródigos e os “mais velhos”.
2014.10.16
Louro de
Carvalho