Nota: o Ano litúrgico começa com o 1º Domingo do Advento e termina com a Solenidade de Cristo, Rei do Universo.
O Mensageiro - O que é, em termos práticos, o ano litúrgico?
Pe. Carlos Cabecinhas - O ano litúrgico é a celebração, no decurso de um ano, de todo o mistério de Cristo. Toda a celebração cristã é sempre celebração de Jesus Cristo, mas tal celebração estende-se, de forma diferenciada, aos vários momentos do ano. No dizer de um liturgista italiano, “o ano litúrgico não é uma ideia, mas uma pessoa, Jesus Cristo e o seu mistério realizado no tempo” (Bergamini). Em termos práticos, é a forma como a Igreja nos propõe celebrar Jesus Cristo, com momentos de particular intensidade. Tem a duração de um ano solar, ao longo do qual nos vai sendo proposto todo um caminho de celebração e aprofundamento do conteúdo fundamental da fé cristã.
OM - Historicamente, como se chegou à definição do ano litúrgico?
CC - É claro que o ano litúrgico não conheceu sempre a estrutura e organização que hoje apresenta. Num primeiro momento, a única festa cristã foi a Páscoa, celebrada, quer uma vez por semana, no Domingo, quer, de modo mais solene, uma vez por ano. Assim, a mais antiga festa cristã é o Domingo, “Páscoa semanal”. Partindo daí, passa a dar-se particular relevo à celebração, uma vez por ano, da mesma festividade. Esta festa anual da Páscoa, celebrada com uma solene vigília, está testemunhada desde o século II. Esse núcleo festivo, a vigília, dará origem ao Tríduo Pascal e ao Tempo Pascal, os cinquenta dias que se seguem ao Tríduo. Só posteriormente se estabeleceu um período de preparação: a Quaresma. Já estava assim estruturado este ciclo festivo pascal quando, na segunda metade do século IV, surgiu o ciclo natalício. Para criar um certo paralelismo com o ciclo pascal, para a celebração do Natal e da Epifania foi criado um tempo de preparação: o Advento. Quer isto dizer que no século V o ano litúrgico já apresentava a configuração que hoje lhe conhecemos.
OM - Como está estruturado o ano litúrgico?
CC - Como se percebe pela breve apresentação da evolução histórica, o ano litúrgico tem três grandes ciclos: o ciclo pascal (Quaresma, Tríduo Pascal e Tempo Pascal), o ciclo natalício (Advento e Tempo do Natal) e o Tempo Comum, isto é, os restantes momentos do ano litúrgico que não pertencem a nenhum dos ciclos anteriores. É claro que haveria ainda a referir o chamado “Santoral”, o calendário das celebrações da Virgem Maria e dos Santos, que atravessa todo o ano litúrgico.
OM - De todos esses tempos e ciclos, qual o principal momento do ano litúrgico?
CC - O centro do ano litúrgico, o seu momento mais importante, é sem dúvida o Tríduo Pascal da paixão, morte e ressurreição de Jesus. No Tríduo, a celebração fundamental é a Vigília Pascal. Toda a Quaresma orienta para a vivência e celebração deste Tríduo, e o Tempo Pascal mais não é do que o prolongamento festivo dessa celebração. Em segundo lugar, em termos de importância, está a celebração do Natal. Curiosamente, a nível social, o Natal aparece como mais importante do que a Páscoa. Em terceiro lugar, destaco o Domingo, como celebração semanal da Páscoa.
OM - Qual lhe parece ser a sensibilidade dos fiéis para a vivência do ano litúrgico?
CC - O ano litúrgico apresenta uma estrutura complexa, o que dificulta a sua percepção, por parte dos féis, como unidade. Julgo que uma parte significativa dos cristãos não tem consciência clara do “ano litúrgico” como unidade. As celebrações sucedem-se e a sua sequência é conhecida, mas não se vai muito além disso. A consequência desta pouca percepção do ano litúrgico como unidade é a inversão da ordem de importância dos diversos momento. Um exemplo flagrante é o do ciclo pascal: tem mais relevo a Quaresma, período de preparação, do que o Tempo Pascal; no próprio Tríduo Pascal, não é raro ter igrejas cheias para a celebração da morte do Senhor, em Sexta-Feira Santa, mas bem menos gente na Vigília Pascal. Sinal desta insuficiente consciência do ano litúrgico como um todo orgânico é o relevo dado a algumas “devoções”, manifestações de piedade popular, em detrimento dos momentos do ano litúrgico. Contudo, esta insuficiente consciência não impede que muitos cristãos vivam intensamente os momentos mais importantes do ano litúrgico.
OM - Que aspectos litúrgicos e teológicos são enriquecidos pela organização do ano litúrgico?
CC - O ano litúrgico é, antes de mais, um modo de santificação dessa dimensão fundamental da nossa existência, que é o tempo. É um modo de tornar significativo, do ponto de vista cristão, o ciclo do ano. Habituámo-nos a quantificar o tempo com repartições matematicamente iguais (horas, minutos e segundos; dias, semanas, meses, anos). Nessa lógica quantificadora, todas as horas são iguais, todos os dias têm a mesma duração… O ano litúrgico dá “qualidade” a esse tempo, destacando alguns momentos; dá-lhes significado. Contudo, o ano litúrgico tem também uma motivação “pedagógica”: a celebração do mesmo Jesus Cristo num ou noutro momento permite-nos captar o sentido e aprofundar a inesgotável riqueza do Seu mistério, contemplado ora numa perspectiva, ora noutra.
OM - Qual a sua experiência de vivência do ano litúrgico?
CC - A pergunta parece-me vaga. De um modo geral, a minha experiência é a de que o ano litúrgico é um verdadeiro e eficaz “guia de vida cristã”: permite-me aprofundar a minha fé e alimentar a minha vida espiritual; põe-me em contacto com a Palavra de Deus e motiva o confronto da minha vida com ela, bem como uma “leitura cristã” dos acontecimentos da minha vida e do mundo que me rodeia; permite-me a saudável alternância entre momentos de grande intensidade e momentos de maior distensão.
OM - Que conselhos daria a quem pretende viver de forma mais consciente o ritmo do ano litúrgico?
CC - Precisamos de recuperar, antes de mais, a consciência da unidade do ano litúrgico e da relação dos vários momentos entre si. A nível prático: prestar particular atenção à Palavra de Deus, às leituras bíblicas que a liturgia nos apresenta em cada tempo do ano litúrgico, que é sempre um elemento fundamental para uma séria vivência dos vários momentos; deixar-se guiar pelos textos do Missal, que nos introduzem no espírito de cada tempo; valorizar, a nível pessoal e familiar, os diversos momentos festivos… A Liturgia das Horas oferece também uma grande riqueza de elementos que nos põem em sintonia com o momento do ano litúrgico que estamos a viver.
ADVENTO
OM - O Advento é um tempo essencialmente de quê?
CC - O Advento é fundamentalmente um tempo de preparação para o Natal, marcado pela espera, pela expectativa. As Normas Gerais sobre o Ano Litúrgico apresentam o tempo do Advento como preparação para o Natal, no qual se celebra a primeira vinda de Cristo, e como tempo de expectativa da vinda gloriosa de Cristo. Não é um tempo penitencial, como a Quaresma, embora os convites à conversão, nas palavra de João Baptista e do profeta Elias, se façam ouvir insistentemente. Tempo de conversão, por ser tempo de preparação para a vinda do Senhor, é marcado porém pela “piedosa e alegre expectativa”, segundo as referidas Normas. Os modelos dessa expectativa da vinda do Senhor são, precisamente, João Baptista e Maria, a mãe de Jesus. Não há momento mais “mariano” no ano litúrgico do que o Advento e o Tempo do Natal.
OM - Como viver bem o advento?
CC - O Advento e o Natal têm sofrido um desgaste notável. De facto, o Advento cristão começa quando, há já muito tempo, se iniciou o grande “advento” comercial. Um tempo de preparação do coração pela conversão vê-se “afogado” em solicitações consumistas. Para viver bem o Advento será, pois, necessário cultivar a sobriedade em gastos natalícios, consoada e presentes… Viver bem o Advento será concentrar-se no fundamental – a preparação interior – dando ao acessório o seu lugar. A nível litúrgico, a vivência do Advento está marcada pelo convite à preparação para acolher o Senhor que vem, pela conversão, e à disponibilidade para a vontade de Deus, a exemplo de Maria, vontade que conhecemos sobretudo pela sua Palavra, a que importa dar lugar e atenção especial.
Entrevista de Rui Ribeiro