quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O Automóvel e a Quaresma


Passara pela quinta de um grande amigo que o recebeu, como sempre, com enorme estima.
O proprietário disse ao visitante que estivesse avontade, que levasse da quinta o que quisesse. Abriu os armazéns e indicou-lhe os campos e os pomares.
O homem entrou no armazém e ficou fascinado com a qualidade das cebolas, dos alhos e das batatas. pegou nuns sacos e entupiu-os. Depois foi pela quinta fora e não resistiu à qualidade das maças raineta, gold e bravo de esmofo. Encharcou umas quantas caixas. Ui! As pêras! Que tentação! Enormes, sãs, bonitas. Mais umas caixas. Passou depois pela horta. Loucura! Cada tomate, cada pimento, cada nabo, cada morango, cada pepino! E as couves? Enoveladas, tenras, frescas..
Chegou o momento de arrumar tudo. O seu automóvel era fraquinho, não era nenhuma bomba. Mala, banco de trás, lugar da frente, grade do tejadilho, tudo, tudo cheio como um ovo.
Pela estrada, o pobre carro mais parecia uma feira ambulante. Muito esganiçado,  velocidades baixas, em andamento de caracol. Todos o ultrapassavam. Rangia por todos os lados e o ponteiro da temperatura não cessava de subir.
Às tantas, o homem pensou consigo mesmo:
- Por este andar nem daqui a um mês chego a casa. Pior ainda. O carro pode estoirar e "vai-te lucro que me dás perca". Com esta velocidade, não tarda a dar-me o sono. E depois!?...
Resolveu então parar à porta de um conhecido, que sabia passar por dificuldades, e repartiu com ele parte dos produtos da quinta. O carro já parecia outro na estrada. Mas a viagem era longa e a carga continuava a ser muita. À frente parou junto da casa de uma família numerosa e aí deixou mais uns produtos. O veículo rolava mais avontade agora. Mais ainda faltava bastante para chegar a casa e, mesmo aliviado, o carrito ainda se sentia constrangido. Parou agora à porta de uns velhinhos reformados e doentes e também aí deixou alguns víveres. Então agora o automóvel rolava normalmente. Baixou o ponteiro da temperatura, pedia velocidades mais altas, sentia-o mais maneirinho, mais livre, mais ele mesmo.

É esta a viagem que a Quaresma nos propõe.
Deus é o dono acolhedor da quinta do mundo. Põe à nossa disposição coisas, caminhos, opções.
O automóvel é cada um de nós. O condutor é a nossa vontade, coração e inteligência.

Quaresma. Tempo de deitar fora o excesso de carga que oprime, manieta e esquenta ameaçadoramente a nossa vida.
Mesmo na pequenez e fragilidade humana, Deus quer que o homem se afirme infinitamente na construção do amor e da paz para todos. Não deseja nunca que o homem se negue a si próprio. Não nos quer sofredores e perdidos, mas que sejamos nós a negar o pecado, o mal, a falta de amor, a falta de esperança e tudo o que seja egoísmos e ódios. O Deus que se descobre em todo o tempo, mas particularmente, neste Tempo da Quaresma, é o Deus da acção afirmativa, da acção sempre positiva sobre e para a humanidade.
 
Então nesta Quaresma, não quer experimentar deitar fora tantos sacos e caixas que sobrecarregam a sua vida?
 
Deixar a injustiça, a mentira, o egoísmo, a ganância, a violência das palavras e dos gestos, a concorrência desleal, a calúnia, a inverdade das coisas como norma de vida pessoal e social, a religiosidade puramente exterior, o fundamentalismo religioso e todas as fezadas infantis, o comodismo interesseiro, o silêncio calculado, a vida centrada no ego sem pensar que somos comunidade, o mal como opção consciente, a recusa do encontro (se quiserem podem continuar a lista)...
Podem ser estes ou outros os sacos e caixas a deitar fora nesta Quaresma e para toda a nossa vida. Tentar não custa e se realizada qualquer coisa nem que seja em pequeno gesto ou sinal pode já fazer uma grande diferença. Tentemos...

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