Percebo e não percebo o aparente choque que se apoderou da opinião pública.
Para mim, foi surpresa por ter sido ontem. Mas estava convencido de que, mais
tarde ou mais cedo, isto iria acontecer. Aliás, ele próprio já há dois anos
tinha afirmado que, se sentisse que já não tinha forças para continuar à frente
do governo da Igreja, resignaria.
Foi um gesto de grande coragem, lucidez e honestidade. Reflectiu em
consciência e fê-lo em plena liberdade - foi bom que o tenha declarado. Já não
sente forças no corpo e no espírito, disse também. Os problemas do mundo actual,
com incidência na fé, são gigantescos e a Igreja precisa de alguém com mais
energia e vigor.
Penso que uma das causas maiores do desgaste foi a sua incapacidade para
reformar a Cúria Romana, questão essencial para o futuro da Igreja - ele próprio
se queixou de que lhe sonegavam informações. Houve uma série de escândalos,
desde a pedofilia à corrupção, do Vatileaks às intrigas no Vaticano, com
correntes que se digladiam e preparam para a sucessão. Bento XVI é um homem
afável e quase tímido - foi a impressão que me ficou da vez em que estive com
ele. É um intelectual e não um homem da administração e, assim, na
impossibilidade dessa reforma, resignou.
Deste pontificado fica a importância do diálogo entre a fé e a razão, a
condenação sistemática da especulação financeira sem regulação, a continuação do
diálogo com as outras confissões cristãs e com as diferentes religiões, o apelo
a dois Estados soberanos: um israelita e outro palestiniano, a possível abertura
ao preservativo.
O sucessor? Ninguém sabe. Mas, no meu entender, deve ser profundamente
cristão, seguir Jesus no seu Evangelho, relativamente jovem, com capacidade de
reformar a Cúria, próximo das pessoas e dos seus problemas reais. Mais
interessado nas pessoas do que na instituição. Penso num João XXIV.
Anselmo Borges, aqui
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