O escritor de “Os Bichos” ou “Pão Ázimo” nunca escondeu a pouca importância que dava aos prémios. Mesmo sem estar presente nenhum membro do governo, o seu país agradece-lhe hoje o legado humano e literário.
Nascido há precisamente um século em São Martinho de Anta no distrito de Vila Real, com o nome Adolfo Correia Rocha, o jovem transmontano foi criado no seio de uma família humilde de gente ligada à terra.
Ainda antes de se tornar no escritor Miguel Torga, o rapaz Adolfo Rocha passou oito anos no Brasil a trabalhar na fazenda de um tio, onde cultivou café. Em 1928 regressou a Portugal e com o apoio monetário do tio, que se havia apercebido da invulgar inteligência do sobrinho, matricula-se na universidade Coimbra onde se licencia em Medicina.
Amor a Coimbra
É precisamente na cidade dos estudantes que o médico escreve “Ansiedade”, o seu primeiro livro. O escritor passa assim a conciliar a profissão médica com a escrita e adopta o pseudónimo Miguel Torga numa homenagem aos escritores Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. O nome “Torga” deve-se a uma urze típica da sua região natal.
Hoje a cidade que adoptou como sua, que amou e onde viveu até à sua morte em 1995 presta-lhe uma merecida homenagem que se desdobrará em várias iniciativas. Um dos pontos altos vai ser a inauguração da casa-museu em que todo o espólio foi doado pela filha do escritor e contém preciosidades como móveis, objectos pessoais, quadros e livros do escritor.
Segundo referiu Clara Rocha, filha de Torga, ao jornal “Público” constam ainda deste espólio raríssimos manuscritos guardados pelo poeta e “alguns dactiloscritos emendados à mão de contos e prefácios das primeiras edições dos livros que o autor assinou ainda com o nome Adolfo Rocha”.
Aversão aos prémios
A aparência sisuda e o rosto pétreo de Miguel Torga são desvalorizados por alguns amigos mais chegados que sempre conviveram com o escritor/poeta e que ao longo da vida conheceram um homem afável e preocupado com os outros, longe da imagem pouco simpática que quem nunca privou com Torga fazia dele.
Dono de uma vasta obra literária dividida entre a poesia e a prosa, o escritor transmontano foi várias vezes um dos nomes falados para o Nobel da Literatura.Contudo a importância dada aos prémios era quase nula. Para o escritor que raramente dava entrevistas e se recusava a autografar as obras, quem o quisesse conhecer tinha obrigatoriamente de ler os seus livros.
Ainda que fosse afoito a este tipo de acontecimentos foram muitas as homenagens feitas em vida e os galardões recebidos, entre eles o Prémio Internacional de Poesia de Knokke-Heist e o primeiro Prémio Camões, atribuído em 1989.
In Expresso
Torga: o seminarista e o ateu que não passava sem Deus
Faz amanhã hoje cem anos que nasceu Miguel Torga. Foi, com efeito, a 12 de Agosto de 1907 que o escritor viu a luz do dia.
Se S. Martinho de Anta foi (palavras suas) o lugar onde e o lugar donde, o Seminário de Lamego acabou por ser (dedução minha) uma espécie de lugar por onde.
De facto, não ocupa mais de um ano na sua vida. Não terá deixado, talvez, grandes marcas na sua personalidade. Mas também não foi totalmente apagado da sua memória.
Jorge Marinho teve a arte de imortalizar, num expressivo quadro, a despedida da terra natal. Ao fundo, vê-se a Igreja. O adolescente, com ar sério, vai num pequeno jumento. Atrás seguem os pais: o progenitor leva os ferros da cama às costas, a mãe transporta, à cabeça, lençóis e cobertores.
Infelizmente, perderam-se os registos da sua matrícula e os termos dos seus exames. Todavia, em A Criação do Mundo alude-se a essa passagem e o Padre Valentim Marques, seu amigo e confidente, testemunha uma viagem em que o escritor fez questão de mostrar «a casa que lhe serviu de Seminário».
Não seria, pois, despropositado que o roteiro torguiano incluísse, além de S. Martinho de Anta e de Coimbra, uma visita a esta cidade por onde Adolfo Correia Rocha passou entre 1919 e 1920.
Nessa altura, o arciprestado de Sabrosa e outros da margem direita do Douro pertenciam à diocese de Lamego.
Numa época em que os Seminários surgem como casas sem gente, é com alguma nostalgia que somos transportados para um tempo em que os Seminários eram gente sem casa. Ou, melhor, gente em várias casas.
Depois de se ver privada do seu Seminário (transformada em messe dos oficiais) e antes de adquirir a Casa do Poço (e muito antes de edificar um novo Seminário de raiz), a diocese espalhou os seminaristas por várias residências da cidade.
O pequeno Adolfo não ficou longe da Sé, num segundo andar com o número 42, cuja varanda ficava em frente da famosa (e ainda hoje existente) Casa das Brolhas. Aí dormia. Aí estudava. A Missa era na Capela particular do Cónego Freitas. E as aulas eram recebidas na casa dos próprios professores.
As notas eram boas, mas o entusiasmo revelava-se reduzido, apesar da alegria da mãe ao vê-lo fazer figura no altar. No final das férias grandes, comunica ao pai a decisão de que não queria ser padre.
Deixa, então, o Seminário, vai-se afastando da Igreja, mas não se furta a um permanente (e, quase sempre, tormentoso) encontro com Deus. Muitos anos mais tarde, viria mesmo a confidenciar: «Deus. O tormento dos meus dias. Tive sempre a coragem de O negar, mas nunca a força de O esquecer».
Julgo que radica aqui o nervo do pensamento torguiano, a sua bússola, a sua densidade e o seu dramatismo. Inclassificável do ponto de vista religioso, nem ele mesmo conseguia definir-se. Por um lado, sentia um impulso para se assumir como ateu mas, por outro lado, ressalvava ser um ateu «a conviver com divindades desde a pia baptismal». Daí o impasse: «Ateu! Quem o poderá ser no meio de uma cultura onde noventa e nove por cento do oxigénio que se respira é de natureza celeste?»
Ao Padre Valentim declarou-se, um dia, «ateu cristão», expressão paradoxal que ilustra eloquentemente a intensidade da sua procura e a abertura do seu ser. O século XX teve muitos «cristãos ateus» que, como Dietrich Bonhoeffer, intentaram uma interpretação ateia do cristianismo. Ao invés, Miguel Torga alimenta uma intrigante presença cristã no seio do seu próprio ateísmo!
É que, como ele mesmo confessa, «ser incréu custa muito». Por isso, «o que dava para me levantar cedo, ir à Missa e voltar da Igreja com a cara que trazia o meu vizinho»! Em dia de Páscoa, não oculta «o gosto que teria de beijar também o Senhor, se acreditasse!».
No fundo, subsiste a impressão de que é um ateu que não consegue viver sem Deus! Um ateu assim será mesmo ateu? Ou não será Deus o indeclinável lugar para onde de Torga?
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