Vivemos uma hora penosa e de grave crise na Igreja católica: na realidade, já desde há algumas décadas, mas era absolutamente proibido dizê-lo publicamente. Quase todos sem empenhavam em sublinhar a eficiência da presença da Igreja na sociedade e a realçar o seu peso e as suas capacidades de intervenção.
Quem não queria fazer parte deste coro habituado a celebrar triunfos sem
nunca conjeturar fracassos, nem sequer parciais, foi autorizadamente denominado
e definido como profeta da desgraça. Mas hoje é um cardeal, o arcebispo de
Munique, ex-presidente das Conferências Episcopais Europeias, membro do
conselho que assiste o papa na reforma da cúria, a gritar que a Igreja «chegou
a um ponto morto», e a afirmar que esta situação lhe alterou a fé. Preste-se
atenção: alterou a fé de um bispo de sessenta anos, induzindo-o a apresentar a
demissão.
Tudo com a subscrição «na obediência e na paz», o moto do papa João.
Vivemos em muitos aspetos um profundo mal-estar que, no entanto, só em
parte é devido aos escândalos suscitados pela pedofilia. Este último é
certamente um crime grave e detestável, e toda a Igreja se tem comprometido em
procurar compreender de maneira nova este abuso, preveni-lo e impedi-lo, até à
condenação.
Mas não nos esqueçamos que quem comete delitos de pedofilia é um doente: a pedofilia está inscrita na patologia de uma pessoa, e por isso a pessoa deve ser não só condenada uma vez cometido o delito, mas também ajudada, acompanhada e acolhida, porque é um ser humano pecador ao qual nunca se deve negar a misericórdia de Deus e da Igreja. Há muito justicialismo no campo católico, muita tendência a ceder às correntes dominantes dos meios de comunicação social e a certo moralismo populista.
Também na Igreja se carrega a cruz, que nas palavras de Jesus é instrumento da própria execução: a cruz é situação cruel e abjeta, que nunca devemos imputar aos outros e da qual não devemos falar piedosamente àqueles que a estão a carregar
Não consigo compreender, antes, como não perturbam as consciências as
revelações da limpeza étnica operada nas escolas católicas no Canadá até 1980,
onde crianças arrancadas às suas famílias e enclausuradas naqueles
colégios-campos de concentração foram maltratadas, negligenciadas, até morrerem
e serem sepultadas em valas comuns (calcula-se pelo menos seis mil). Delitos
perpetrados por padres, religiosos, religiosas…
Aqui não há patologia, há malignidade, há um exercício perverso do poder.
Pergunto-me: como foi possível para cristãos que se dizem “consagrados” cometer
semelhantes crimes? E estes crimes não serão gravíssimos? Por isso é um
escândalo, que suscita interrogações sobre a capacidade de viver o
cristianismo, numa Igreja até generosa de missão, ardente em devoção, como no
Canadá, mas depois pior que perseguidora. Portanto, não se restrinja a crise da
Igreja à praga da pedofilia: há toda uma ordem de autoridade, poder, riqueza
que deve ser julgada pelo Evangelho.
Como tentar sair disto e chegar a uma verdadeira reforma? Sim, sabemos que
a reforma começa por nós próprios, mas isso a Igreja sempre pregou, sem depois
dar passos para reformar a instituição. O cardeal Marx sublinha-o: as culpas
não são somente pessoais, mas correlatas à instituição.
Nesta situação, também na Igreja se carrega a cruz, que nas palavras de
Jesus é instrumento da própria execução: a cruz é situação cruel e abjeta, que
nunca devemos imputar aos outros e da qual não devemos falar piedosamente
àqueles que a estão a carregar. É extraordinário que o próprio Jesus foi
ajudado a levar a cruz não só pelo Pai, mas também por um pobre homem, Simão de
Cirene, que no caminho do Calvário tomou a cruz às suas costas. Escrevia o
teólogo Yves Congar: «Sofrer na Igreja é penoso, mas sofrer por causa da Igreja
é terrível».
Fonte: aqui
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