Então leia:
"– Não, Tio Ambrósio! Eu estava a referir-me ao nosso mais célebre filósofo com formação universitária parisiense. Por lá andou, mudo como um calhau, durante dois anos, mas agora irrompeu aí com uma pujança, que até parece que todos os que estão à sua volta se devem inclinar reverentemente para ouvir a última versão da verdade sobre aquilo que se passou em Portugal nestes últimos anos de desgoverno. E todos ficaram a saber uma coisa. O filósofo desterrado voluntariamente em Paris não teve nem sombra de qualquer culpa ou de qualquer responsabilidade no desmoronar social e económico do País. É verdade que ele deu às de vila-diogo quando já não havia dinheiro para pagar os salários aos trabalhadores do Estado no final desse mês. Mas a culpa foi dos outros. Os outros é que não entenderam a genialidade da sua inteligência; os outros é que não deram ouvidos às suas propostas de solução; os outros é que têm toda a responsabilidade pelo facto de o navio, de que ele era o comandante, estar a meter água por todos os lados e correr o risco iminente de se afundar antes de chegar a qualquer porto de abrigo. É estranho! Não é, Tio Ambrósio? Como é que um comandante de uma embarcação à deriva não tem um lampejo de lucidez e um pouco de vergonha na cara para reconhecer que a primeira responsabilidade é dele e só dele?
– Acho que, em vez de lições de filosofia parisiense, era melhor ter optado por seguir a carreira de adjunto de alguns treinadores de futebol menos bem sucedidos. Esses iriam ensinar-lhe aquela linguagem já nossa conhecida de que, quando perdem, a responsabilidade é sempre sua e não dos rapazes que mandaram para dentro do campo…
– Isso pode não ser inteiramente verdade, mas eu acho que é uma atitude digna, Tio Ambrósio. De facto, nós sabemos que, quando as coisas correm mal, a responsabilidade não pode ser atribuída a um só, como se ele fosse um bode expiatório, obrigado a pagar pelos pecados de todos. Mas haja um pouco de lucidez, Tio Ambrósio! Um sujeito que está à frente dos destinos de um país durante cinco ou seis anos, que não se cansa de dizer, durante o seu consulado, que tudo está a correr às mil maravilhas, que nenhum dos opositores tem a mais pequena razão para falar, porque as soluções que ele tem na manga são praticamente mágicas… Um fulano destes que, no tempo da tempestade, enquanto os outros se desunham, vai para o estrangeiro, em vez de ficar cá a dar o seu contributo, e aparece agora, passados dois anos, com a fanfarronice a que sempre nos habituou, é de deixar qualquer um tão pasmado, como o estará o Liberato, a esta hora, diante de uma obra qualquer de Miguel Ângelo.
– Cada um é como é, Carlos!
– Isso é verdade! Mas que não façam dos outros parvos! Que reconheçam as suas asneiras e tenham a coragem de bater com a mão no peito. Um bocadinho de humildade não fica mal a ninguém, Tio Ambrósio!
– Humildade? Para certas pessoas, nomeadamente para certos políticos, em que se pode incluir esse pequeno filósofo parisiense, essa palavra não existe nem no dicionário de Morais, nem no de Machado, nem no da Porto Editora (deixa passar a publicidade) nem em nenhum outro. Para esses, a humildade é mais ou menos como a verdade para Pilatos. Não sabia o que era e perguntou a Jesus: "O que é a verdade?".
– E são os maiores, Tio Ambrósio! Lavam as mãos…e pronto!
– E se as lavam é porque sentem que as trazem sujas…
– Bem sujas, Tio Ambrósio! E o povo, que é paciente mas não é burro, sabe muito bem quem anda por aí com as mãos mais que sujas. Nojentas!"Tirado do jornal "O Amigo do Povo"
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.