quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Guerras religiosas voltam ao mundo cristão

Resultado de imagem para Igreja Ortodoxa Russa rompe relações com patriarca de Constantinopla


Na Ucrânia, presentemente, existentes três igrejas ortodoxas (a do Patriarcado de Kiev, a Autocéfala e a do Patriarcado de Moscovo) e ninguém sabe como irão elas repartir os templos ortodoxos do país.


Normalmente, os políticos, a imprensa e grande parte dos cidadãos comuns só reagem ao que se passa no mundo no momento em que rebenta um forte conflito. Mesmo que já se adivinhe que a situação vai ser muito grave, a prioridade vai para as lutas políticas internas ou para o futebol. Por isso, muitos ficam “espantados” como é que políticos como, por exemplo, Donald Trump ou Jair Bolsonaro podem chegar ao cargo de presidente dos seus países eleitos pela maioria dos votantes.


Mas esta “surpresa” passa-se em muitas outras esferas, incluindo o campo da religião. Que os muçulmanos se matem uns ou outros por motivos religiosos já não surpreende ninguém, mas guerras entre cristãos na actualidade? Como será possível? Isso é coisa da Idade Média!, dirão muitos. Mas não é verdade: a guerra entre cristãos ortodoxos já está instalada, e não algures muito longe de nós, ali logo na Europa do Leste, podendo as repercussões chegar a Portugal.


A Igreja Ortodoxa Russa decidiu romper com o Patriarca Bartolomeu, chefe da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, que é considerado tradicionalmente como a figura mais importante no cristianismo ortodoxo (embora esteja a léguas de distância do poder do Bispo de Roma no seio da Igreja Católica), e este decidiu conceder a autocefalia (autonomia) à Igreja Ortodoxa Ucraniana, desferindo um rude golpe na parte que depende do Patriarca Ortodoxo Russo. A Igreja Ortodoxa Russa condenou imediatamente essa decisão, proibiu os seus membros de participarem em cerimónias religiosas conjuntas com os ortodoxos que obedecem ao Patriarca de Constantinopla e de visitarem os templos destes, nomeadamente o Mosteiro de Athon, na Grécia, muito popular entre os russos.


O metropolita Ilarion, chefe do Departamento Internacional do Patriarcado de Moscovo que recentemente visitou Portugal, já considerou este conflito uma crise pior do que o Cisma de 1054, que levou à separação entre ortodoxos e católicos.


Na Ucrânia, presentemente, existentes três igrejas ortodoxas (a do Patriarcado de Kiev, a Autocéfala e a do Patriarcado de Moscovo), sendo que as duas primeiras irão ser a base da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana independente. E aqui reside um dos principais problemas: como irão ser repartidos os templos ortodoxos entre as várias igrejas. O Patriarcado de Moscovo receia que os “autocéfalos” comecem a ocupar à força os templos que ele diz pertencerem-lhe, tendo-se já registado várias tentativas. Uma das principais batalhas terá lugar em torno da Laura Petcherski, em Kiev, um dos lugares mais sagrados para os ortodoxos do Leste da Europa.


O ideal seria dar aos prelados e paroquianos o direito de opção mas, num país dilacerado por uma guerra contra a Rússia, será um princípio de difícil realização. Alguns dos membros da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo já anunciaram a passagem para o outro lado, como é o caso, por exemplo, do conhecido metropolita (arcebispo) Alexandre. E qual será a decisão dos crentes e dos sacerdotes das paróquias dessa metrópole? Dificilmente todos irão seguir o seu exemplo e, à guerra política, económica e militar entre a Rússia e a Ucrânia, pode vir a juntar-se a religiosa.


A Igreja Ortodoxa Russa não quer perder um dos seus mais numerosos rebanhos (segundo dados aproximados, cerca de 15 milhões num total de 180 milhões). Além disso, esta separação enfraquece fortemente a tentativa do Patriarcado de Moscovo se tornar no principal centro da ortodoxia no mundo, pois este exemplo poderá ser seguido pelas igrejas ortodoxas da Moldávia e da Letónia.


Como não podia deixar de ser, os apologistas da política do Kremlin e do actual casamento entre o Estado e a Igreja na Rússia de Putin não só encontraram os autores da divisão da Ortodoxia entre os “nazis” e “forças de extrema-direita” na Ucrânia, mas também nos Estados Unidos e Canadá.


Não é segredo para ninguém que a extrema-direita ucraniana tenta tirar frutos desta divisão, radicalizando formas e meios de solução do problema: ocupação de templos. Também é verdade que a principal base de apoio em termos de rebanho do Patriarca Bartolomeu se encontra nos Estados Unidos e no Canadá, países onde a diáspora ucraniana tem bastante influência. A actual direcção dos Estados Unidos não esconde a sua vontade de ter um regime aliado forte às portas da Rússia.


Porém, o Patriarcado de Moscovo parece considerar que os ucranianos têm a memória curta, pois é sabido que a Igreja Ortodoxa Russa apoiou a invasão da Crimeia e do Leste da Ucrânia, abençoa os separatistas pró-russos, é um dos canais da política externa agressiva de Vladimir Putin em geral.


A formação do Estado ucraniano moderno é um fenómeno muito recente, processo que avança e se consolida numa base anti-russa, como aconteceu na Estónia, Letónia e Lituânia, bem como noutros países da zona de influência soviética. Todos eles receiam que a história se repita.


Vladimir Putin não pode perder este combate em defesa do “mundo russo” e contra os cismáticos. Por isso, é de prever um envolvimento crescente do poder político russo neste conflito religioso. Os resultados poderão ser desastrosos para o Leste da Europa, tanto mais que os actuais dirigentes políticos ucranianos também não perdem a oportunidade para ganhar pontos, pois as eleições gerais irão realizar-se no início de 2019 e o conflito religioso será um dos centrais na luta política.


PS. Em Portugal, há várias comunidades ortodoxas e uma forte diáspora ucraniana, por isso, o conflito pode também manifestar-se aqui.


José Milhazes, aqui

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