quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

“Os jornalistas só têm poder se nunca se vergarem aos poderes”


O enunciado em epígrafe é do Presidente da República Rebelo de Sousa e foi proferido no 4.º Congresso dos Jornalistas, que decorreu em Lisboa, no Cinema São Jorge, de 12 a 15 de janeiro.

Os 700 congressistas denunciaram os crescentes atropelos à deontologia sob os cliques e audiências, as discutíveis opções editoriais na hierarquização da informação, a falta de cultura nas redações e a cedência à perspetiva empresarial na gestão editorial.

Na verdade, há crise no jornalismo e com várias causas. Algumas são exógenas à profissão, sendo as mais invocadas: o contexto económico em que atuam os grupos de comunicação social, as fortes quebras publicitárias e as radicais mudanças de hábitos dos consumidores. Porém, o Congresso serviu também para colocar na rota do debate as culpas dos próprios profissionais. Com efeito, apesar do reconhecimento de que há bom jornalismo em Portugal, em boa parte das redações desvanecem alguns dos princípios mais elementares a que os jornalistas estão obrigados no plano ético e no deontológico. E não cumprem porque não conseguem, não querem ou não sabem. A este respeito, José Pedro Castanheira considerou:

“Acossados pela lógica desumana da concorrência, vergados à ditadura do direto, apanhados no ciclo infernal da informação-espetáculo, sujeitos à pressão dos cliques, dos likes, das visualizações e das audiências, os media não quiseram (não querem) saber de conceitos ultrapassados como o decoro, o respeito, o bom senso ou a decência”.

Crendo haver “sempre lugar para o verdadeiro jornalismo”, Castanheira (presidiu há 19 anos à comissão organizadora do 3.º Congresso) lamenta que os jornalistas se transformem em “simples pé de microfone” e que as chefias se demitam da função de editar – trabalho que parece haver cada vez menos nos nossos media, sobretudo no online, nas rádios e televisões, onde o que mais importa é ser o primeiro, mesmo que à margem das regras mais elementares”.

E António Marujo debruçou-se sobre alguns “suicídios do jornalismo”, usando a sobre-exposição do futebol na agenda como exemplo de erros que a classe tem alimentado. A este propósito, adiantou:

“Já dei conta de noticiários na rádio ou na televisão abrirem, dois dias antes dos jogos – dois dias antes! –, com as declarações dos treinadores sobre as suas expectativas, que são sempre iguais e sempre as mesmas”.

Por outro lado, mata-se o jornalismo quando não se querer saber da vida das pessoas, pois “saúde, educação ou justiça, por exemplo, interessam, na maior parte dos casos, mais pelas decisões políticas do que pelos efeitos para cidadãos e utentes”, prosseguiu Marujo, criticando a “forma como abdicamos de ser jornalistas e entregamos esse papel a comentadores que mais não são que políticos ou economistas com interesses a defender”.

Frederico Duarte de Carvalho chamou ao palco outro problema da profissão: o da falta de cultura geral dos jornalistas e das redações – para o que citou o jornalista britânico Nick Davies, no livro Flat Earth News:

“Historicamente, sempre houve um elemento de ignorância no jornalismo, apenas porque tenta registar a verdade à medida que esta acontece. Agora, isso é ainda pior. É endémico. A ética da honestidade foi ultrapassada pela produção massiva de ignorância.”.

A partir daqui, Duarte de Carvalho sugeriu que a atual falta de cultura geral

“Faz com que pessoas que estudaram jornalismo, formaram-se depois em jornalismo, cumpriram o estágio e obtiveram a carteira profissional de jornalista e assinam como sendo jornalistas, não façam depois jornalismo”.

E concluiu:

“O problema é ainda mais sério e grave quando essas pessoas acreditam honestamente que fazem jornalismo e não sabem que não o fazem”.

Por seu turno, José Manuel Mestre constatou que “o jornalismo, enquanto jornalismo, parece condenado e vive um imenso pesadelo face à evidente erosão do modelo empresarial que o suporta”. É problema que origina sucessivos cortes em busca de equilíbrios financeiros que têm efeito de dominó: chutam a profissão para o “low cost journalism”, que induz “uma imparável degradação da oferta que há de condenar de vez o verdadeiro jornalismo”. Assim, a profissão “ou morre do mal, ou da cura”. Mestre sugere, por isso, a reflexão na viabilidade de criar “uma nova geração de meios de comunicação sem fins lucrativos”, rigorosamente independentes e profissionais, “orientados para os novos suportes de jornalismo digital” – com suporte em associações cívicas, universidades, fundações, empresas, entidades sem fins lucrativos ou movimentos locais e regionais. E insta os jornalistas mais jovens e os estudantes de jornalismo a não terem medo, sublinhando:

“O futuro do jornalismo começa na vossa independência e na coragem para exercê-la. Trabalhar 10 ou 12 horas por dia como 'porta-microfone', 'fazedor de leads', 'embrulhador de fait-divers' ou 'publicador multimédia' a troco de 600 euros por mês, sem condições para ter vida própria ou qualidade de vida, amedrontado e sem se questionar… não é ser jornalista”.

Augusto Freitas de Sousa apontou como um dos males da profissão “o crescente peso da perspetiva empresarial no exercício jornalismo e a aceitação dessa realidade por parte dos jornalistas”. Assim, os jornalistas já nem se atrevem a propor trabalhos que, por muito meritórios que fossem, “são considerados não vendáveis”, sendo “forçados a tratar assuntos apenas pela perceção, tantas vezes errada, de que aquela matéria vende”.

Segundo Freitas de Sousa, outra consequência desta deriva empresarial nas redações é o facto de, “em detrimento de quem trabalha a sério nas redações”, o número de “generais” ter passado “a ser muito próximo dos soldados, quando não são mais”. Mais: os atuais “decisores” – diretores ou editores – tornam-se cada vez mais parecidos com “o público, leitores, espectadores e ouvintes”. Dantes, o jornalista era quase um intelectual ou, pelo menos, uma pessoa de cultura e academia acima da média; hoje praticamente faz a leitura do que os consumidores mais gostam para lhes apresentar “um leque de possibilidades que até podem ser medíocres ou não notícias”, mas “é disso que eles gostam”.

***

A precariedade foi um dos temas em evidência. Maria Flor Pedroso, presidente do 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses, disse na sessão de abertura perante uma sala cheia:

“Em cada 10 jornalistas no ativo, 6 ganham menos de mil euros, 5 têm vínculo precário, 4 têm recibos verdes, 4 têm medo de perder emprego e só um tem mais de 55 anos. E morremos cedo, e muitos de nós morreram demasiado cedo.”.

Também o Presidente da República, ex-jornalista, esteve na abertura do Congresso, o primeiro desde 1998, e falou da precariedade, afirmando que “a precariedade enfraquece a vossa situação”. Referia-se ao grupo profissional a que pertenceu e que (números seus) conta com cerca de 7750 profissionais. Apontou a imprensa regional, que foi morrendo; o esvaziamento da imprensa nacional; e o que sofrem televisões e rádios com a rarefação da publicidade. E aludiu à exposição que viu no cinema São Jorge: 16 fotografias de 16 fotógrafos portugueses que entraram numa situação precária nos últimos três anos – que “são os primeiros a ser atingidos”. E Marcelo deixou aos jornalistas um enunciado desafiante:

“Os jornalistas só têm poder se nunca se vergarem aos poderes”.

Os jornalistas são o retrato duma classe em que metade das pessoas tem um vínculo precário. Um estudo realizado na Universidade de Coimbra, liderado por João Miranda, a partir dum inquérito a 806 jornalistas, de 2015, explicado no 2.º dia do Congresso, refere que, dos inquiridos, 25% têm contratos de prestação de serviços [com recibo verde], 80 são finalistas de cursos de Jornalismo e Comunicação de 10 universidades, orientados por 20 professores.

A seguir à explicação do predito estudo (apresentado pela primeira vez em dezembro de 2016), houve um debate sobre o estado do jornalismo com Alexandre Afonso, Anabela Neves, Carlos Rodrigues, Carlos Rodrigues Lima, João Pedro Pereira, José Pedro Castanheira, Nicolau Santos e Sebastião Bugalho. E seguiu-se um painel com os diretores de 20 meios de comunicação portugueses.

As conclusões do predito estudo coincidem com os dados a que aludiu Maria Flor Pedroso na abertura do Congresso. João Miranda diz que o jornalismo “é uma profissão jovem, que se abandona relativamente cedo” – tendência que vem de 2006, pois, “até aí, desde os anos 30, o número de jornalistas sempre aumentou”. Sofia Branco, presidente do SJ (Sindicato dos Jornalistas), frisou que é uma profissão de baixos salários, pois “1/3 ganha menos de 700 euros líquidos”. E, segundo Goulart Machado, presidente da Casa da Imprensa (na organização com o SJ e o Clube dos Jornalistas), “dois mil abandonaram a profissão” desde o 3.º Congresso.

***

Na sessão de encerramento do congresso, foi aprovada unanimemente esta resolução final:


1. O 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses concluiu que as condições em que se exerce hoje o jornalismo, pilar da democracia, comprometem o direito constitucional à informação, indispensável para o exercício pleno da cidadania.

2. As condições de trabalho – dimensão reduzida das redações com os despedimentos, precariedade, baixos salários e falta de tempo – estão a ter efeitos na qualidade do jornalismo e condicionam a independência dos jornalistas.

3. A profunda mudança no enquadramento do setor está a afetar a credibilidade do jornalismo. O contributo dos jornalistas é determinante para ultrapassar as ameaças e desafios que se colocam à viabilidade da informação de qualidade.

4. A legislação laboral tem de ser cumprida em Portugal no setor do jornalismo, sendo urgente uma ação rápida e eficaz da Autoridade para as Condições de Trabalho para acabar com os falsos estágios, os falsos recibos verdes e os falsos contratos de prestação de serviço.

5. A autorregulação tem de ser reforçada e a regulação tem de ser eficaz.

6. Os jornalistas têm de ter maior peso e presença nas entidades reguladoras. É necessário iniciar um processo de revisão legislativa que torne essas entidades mais eficazes e mais participadas pelos jornalistas.

7. Os princípios éticos e deontológicos têm de ser reforçados, têm de abranger todos os jornalistas e têm de ser aplicados com eficácia.

8. Os conselhos de redação têm de ter um papel ativo, o que exige a proteção legal dos jornalistas que neles participam. Os pareceres dos conselhos de redação têm de ser vinculativos, nomeadamente para os cargos de direção e chefias.

9. É crucial que os jornalistas reforcem as estruturas próprias da classe, desde logo o Sindicato dos Jornalistas e a sua presença nas redações com uma agenda própria, para a defesa dos direitos dos jornalistas e a afirmação do jornalismo.

10. É fundamental avaliar, melhorar e fortalecer a relação do setor com as instituições de ensino superior e outras entidades formativas devidamente credenciadas.

11. É urgente promover a literacia mediática, com iniciativas no domínio da educação pré-universitária e junto da população em geral.

12. Os jornalistas, reunidos no 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses, assumem o compromisso de cumprir os deveres e as responsabilidades decorrentes dos princípios ético-deontológicos do jornalismo e das melhores práticas do exercício e regulação da profissão.

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Um congressista considera, em artigo de imprensa, que o 4.º Congresso dos Jornalistas “nasce de um equívoco”. A sua realização era uma promessa da campanha eleitoral da atual direção do Sindicato. E esta, com a preocupação de alargar o Congresso a todos os jornalistas, delegou essa tarefa numa organização externa à direção do Sindicato. A comissão executiva da comissão organizadora não contou com as entidades promotoras da realização do Congresso: o Sindicato, Casa da Imprensa e Clube dos Jornalistas. E, sendo preocupação inicial que o Congresso não fosse apenas dos sindicalizados, o Congresso ficou quase sem orientação sindical.

Na opinião do aludido congressista, o Congresso deveria ter sido um congresso sindical, com longos debates sobre o estado da arte, em que se ouvissem e se discutissem soluções. Mas foi “uma mistura entre conferência sobre o jornalismo e um congresso académico, onde se ouvem comunicações (umas dezenas) e em que se deixa pouco tempo para os jornalistas falar”. Tendo-lhes sido reservadas, na melhor das hipóteses, 7 horas em 22 horas nas sessões do Congresso, “os congressistas foram, na prática, sentados como público”.  

Sinais desta ausência de orientação sindical são, entre outros:

- Só na terceira sessão, a organização decidiu abrir aos congressistas o debate, em prejuízo dos convidados;

- O Congresso fechou com uma mesa redonda com os patrões do setor (poder económico) e com a ERC (poder político);

- As 7 sessões do congresso dispersam-se por muitos assuntos, sem tempo para se aprofundar nenhum deles: “O Estado do Jornalismo”, “O jornalismo de proximidade e a profissão fora dos grandes centros”, “Afirmar o jornalismo – independência e credibilidade”, “Ensino, acesso à profissão e formação profissional” e “Regulação, Ética e Deontologia” ou “Viabilidade económica e os desafios do jornalismoque é, aliás, um tema de fronteiras ténues entre os profissionais e as administrações...;

- As condições de trabalho e de produção de informação – que deveria ter sido o tema nobre do congresso – foram assunto remetido para duas horas do dia 14.

Ora, apesar de haver fatores exógenos à profissão e o império dos grandes grupos económicos, é certo que os jornalistas são responsáveis por as coisas terem atingido o estado a que chegaram. Porém, há jornalistas mais responsáveis do que outros. E, pelos vistos, entre esses dois mundos, a organização não teve em conta o estado de espírito das redações – em que todos querem fazer ouvir a sua voz e denunciar o que se vive. Deu muito mais espaço – quase sem contraditório – a quem, dia após dia, contribui para o aprofundamento da crise atual do jornalismo.

Serão os jornalistas capazes de fazer a inversão do que denunciam nos pontos 1, 2, 3, 5 e 6 da resolução que aprovaram por unanimidade? Conseguirão levar a cabo o que prometem nos restantes 7 pontos da resolução? Se “sim”, há jornalistas!

2016.01.16 – Louro de Carvalho

 

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