O enunciado em epígrafe é do Presidente da
República Rebelo de Sousa e foi proferido no 4.º Congresso dos Jornalistas, que
decorreu em Lisboa, no Cinema São Jorge, de 12 a 15 de janeiro.
Os 700 congressistas denunciaram os crescentes
atropelos à deontologia sob os cliques e audiências, as discutíveis opções editoriais
na hierarquização da informação, a falta de cultura nas redações e a cedência à
perspetiva empresarial na gestão editorial.
Na verdade, há crise no jornalismo e com várias
causas. Algumas são exógenas à profissão, sendo as mais invocadas: o contexto
económico em que atuam os grupos de comunicação social, as fortes quebras
publicitárias e as radicais mudanças de hábitos dos consumidores. Porém, o
Congresso serviu também para colocar na rota do debate as culpas dos próprios profissionais.
Com efeito, apesar do reconhecimento de que há bom jornalismo em Portugal, em
boa parte das redações desvanecem alguns dos princípios mais elementares a que
os jornalistas estão obrigados no plano ético e no deontológico. E não cumprem
porque não conseguem, não querem ou não sabem. A este respeito, José Pedro
Castanheira considerou:
“Acossados pela lógica desumana da
concorrência, vergados à ditadura do direto, apanhados no ciclo infernal da
informação-espetáculo, sujeitos à pressão dos cliques, dos likes, das visualizações e das audiências, os media não quiseram (não querem) saber de conceitos ultrapassados
como o decoro, o respeito, o bom senso ou a decência”.
Crendo haver “sempre lugar para o verdadeiro
jornalismo”, Castanheira (presidiu há 19 anos à comissão
organizadora do 3.º Congresso) lamenta que os jornalistas se transformem em “simples pé de microfone” e que
as chefias se demitam da função de editar – trabalho que parece haver cada vez
menos nos nossos media, sobretudo no online, nas rádios e televisões, onde o
que mais importa é ser o primeiro, mesmo que à margem das regras mais
elementares”.
E António Marujo debruçou-se sobre alguns “suicídios
do jornalismo”, usando a sobre-exposição do futebol na agenda como exemplo de
erros que a classe tem alimentado. A este propósito, adiantou:
“Já dei conta de noticiários na rádio ou
na televisão abrirem, dois dias antes dos jogos – dois dias antes! –, com as
declarações dos treinadores sobre as suas expectativas, que são sempre iguais e
sempre as mesmas”.
Por outro lado, mata-se o jornalismo quando não se querer
saber da vida das pessoas, pois “saúde, educação ou justiça, por exemplo,
interessam, na maior parte dos casos, mais pelas decisões políticas do que
pelos efeitos para cidadãos e utentes”, prosseguiu Marujo, criticando a “forma
como abdicamos de ser jornalistas e entregamos esse papel a comentadores que
mais não são que políticos ou economistas com interesses a defender”.
Frederico Duarte de Carvalho chamou ao palco outro
problema da profissão: o da falta de cultura geral dos jornalistas e das
redações – para o que citou o jornalista britânico Nick Davies, no livro Flat Earth News:
“Historicamente, sempre houve um elemento
de ignorância no jornalismo, apenas porque tenta registar a verdade à medida
que esta acontece. Agora, isso é ainda pior. É endémico. A ética da honestidade
foi ultrapassada pela produção massiva de ignorância.”.
A partir daqui, Duarte de Carvalho sugeriu que a atual
falta de cultura geral
“Faz com que pessoas que estudaram
jornalismo, formaram-se depois em jornalismo, cumpriram o estágio e obtiveram a
carteira profissional de jornalista e assinam como sendo jornalistas, não façam
depois jornalismo”.
E concluiu:
“O problema é ainda mais
sério e grave quando essas pessoas acreditam honestamente que fazem jornalismo
e não sabem que não o fazem”.
Por seu turno, José Manuel Mestre constatou que “o
jornalismo, enquanto jornalismo, parece condenado e vive um imenso pesadelo
face à evidente erosão do modelo empresarial que o suporta”. É problema que
origina sucessivos cortes em busca de equilíbrios financeiros que têm efeito de
dominó: chutam a profissão para o “low
cost journalism”, que induz “uma imparável degradação da oferta que há de
condenar de vez o verdadeiro jornalismo”. Assim, a profissão “ou morre do mal,
ou da cura”. Mestre sugere, por isso, a reflexão na viabilidade de criar “uma
nova geração de meios de comunicação sem fins lucrativos”, rigorosamente
independentes e profissionais, “orientados para os novos suportes de jornalismo
digital” – com suporte em associações cívicas, universidades, fundações,
empresas, entidades sem fins lucrativos ou movimentos locais e regionais. E insta
os jornalistas mais jovens e os estudantes de jornalismo a não terem medo,
sublinhando:
“O futuro do jornalismo começa na vossa
independência e na coragem para exercê-la. Trabalhar 10 ou 12 horas por dia
como 'porta-microfone', 'fazedor de leads',
'embrulhador de fait-divers' ou
'publicador multimédia' a troco de 600 euros por mês, sem condições para ter
vida própria ou qualidade de vida, amedrontado e sem se questionar… não é ser
jornalista”.
Augusto Freitas de Sousa apontou como um dos males da
profissão “o crescente peso da perspetiva empresarial no exercício jornalismo e
a aceitação dessa realidade por parte dos jornalistas”. Assim, os jornalistas
já nem se atrevem a propor trabalhos que, por muito meritórios que fossem, “são
considerados não vendáveis”, sendo “forçados a tratar assuntos apenas pela
perceção, tantas vezes errada, de que aquela matéria vende”.
Segundo Freitas de Sousa, outra consequência desta deriva
empresarial nas redações é o facto de, “em detrimento de quem trabalha a sério
nas redações”, o número de “generais” ter passado “a ser muito próximo dos
soldados, quando não são mais”. Mais: os atuais “decisores” – diretores ou
editores – tornam-se cada vez mais parecidos com “o público, leitores,
espectadores e ouvintes”. Dantes, o jornalista era quase um intelectual ou,
pelo menos, uma pessoa de cultura e academia acima da média; hoje praticamente
faz a leitura do que os consumidores mais gostam para lhes apresentar “um leque
de possibilidades que até podem ser medíocres ou não notícias”, mas “é disso
que eles gostam”.
***
A precariedade foi um dos temas em evidência. Maria Flor Pedroso,
presidente do 4.º Congresso
dos Jornalistas Portugueses, disse na sessão de abertura perante uma sala
cheia:
“Em cada 10 jornalistas no ativo, 6
ganham menos de mil euros, 5 têm vínculo precário, 4 têm recibos verdes, 4 têm
medo de perder emprego e só um tem mais de 55 anos. E morremos cedo, e muitos
de nós morreram demasiado cedo.”.
Também o Presidente da República, ex-jornalista, esteve na abertura do Congresso,
o primeiro desde 1998, e falou da precariedade, afirmando que “a precariedade
enfraquece a vossa situação”. Referia-se ao grupo profissional a que pertenceu
e que (números seus) conta com cerca de 7750
profissionais. Apontou a imprensa regional, que foi morrendo; o esvaziamento da
imprensa nacional; e o que sofrem televisões e rádios com a rarefação da
publicidade. E aludiu à exposição que viu no cinema São Jorge: 16 fotografias
de 16 fotógrafos portugueses que entraram numa situação precária nos últimos
três anos – que “são os primeiros a ser atingidos”. E Marcelo deixou aos
jornalistas um enunciado desafiante:
“Os jornalistas só têm poder se nunca se vergarem aos poderes”.
Os jornalistas
são o retrato duma classe em que metade das pessoas tem um vínculo precário. Um
estudo realizado na Universidade de Coimbra, liderado por João Miranda, a
partir dum inquérito a 806 jornalistas, de 2015, explicado no 2.º dia do
Congresso, refere que, dos inquiridos, 25% têm contratos de prestação de serviços
[com recibo verde], 80 são finalistas de cursos de
Jornalismo e Comunicação de 10 universidades, orientados por 20 professores.
A
seguir à explicação do predito estudo (apresentado pela primeira vez em dezembro de 2016), houve um debate sobre o estado do
jornalismo com Alexandre Afonso, Anabela Neves, Carlos Rodrigues, Carlos
Rodrigues Lima, João Pedro Pereira, José Pedro Castanheira, Nicolau Santos e
Sebastião Bugalho. E seguiu-se um painel com os diretores de 20 meios de
comunicação portugueses.
As
conclusões do predito estudo coincidem com os dados a que aludiu Maria Flor
Pedroso na abertura do Congresso. João Miranda diz que o jornalismo “é uma
profissão jovem, que se abandona relativamente cedo” – tendência que vem de
2006, pois, “até aí, desde os anos 30, o número de jornalistas sempre aumentou”.
Sofia Branco, presidente do SJ (Sindicato dos Jornalistas), frisou que é uma profissão de baixos salários, pois “1/3 ganha menos
de 700 euros líquidos”. E, segundo Goulart Machado, presidente da Casa da
Imprensa (na organização
com o SJ e o Clube dos Jornalistas), “dois mil abandonaram a profissão” desde o 3.º Congresso.
***
Na sessão de encerramento do congresso, foi aprovada unanimemente esta resolução final:
1. O 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses
concluiu que as condições em que se exerce hoje o jornalismo, pilar da
democracia, comprometem o direito constitucional à informação, indispensável
para o exercício pleno da cidadania.
2. As condições de trabalho – dimensão reduzida das
redações com os despedimentos, precariedade, baixos salários e falta de tempo –
estão a ter efeitos na qualidade do jornalismo e condicionam a independência
dos jornalistas.
3. A profunda mudança no enquadramento do setor está a
afetar a credibilidade do jornalismo. O contributo dos jornalistas é
determinante para ultrapassar as ameaças e desafios que se colocam à
viabilidade da informação de qualidade.
4. A legislação laboral tem de ser cumprida em
Portugal no setor do jornalismo, sendo urgente uma ação rápida e eficaz da
Autoridade para as Condições de Trabalho para acabar com os falsos estágios, os
falsos recibos verdes e os falsos contratos de prestação de serviço.
5. A autorregulação tem de ser reforçada e a regulação
tem de ser eficaz.
6. Os jornalistas têm de ter maior peso e presença nas
entidades reguladoras. É necessário iniciar um processo de revisão legislativa
que torne essas entidades mais eficazes e mais participadas pelos jornalistas.
7. Os princípios éticos e deontológicos têm de ser reforçados,
têm de abranger todos os jornalistas e têm de ser aplicados com eficácia.
8. Os conselhos de redação têm de ter um papel ativo,
o que exige a proteção legal dos jornalistas que neles participam. Os pareceres
dos conselhos de redação têm de ser vinculativos, nomeadamente para os cargos
de direção e chefias.
9. É crucial que os jornalistas reforcem as estruturas
próprias da classe, desde logo o Sindicato dos Jornalistas e a sua presença nas
redações com uma agenda própria, para a defesa dos direitos dos jornalistas e a
afirmação do jornalismo.
10. É fundamental avaliar, melhorar e fortalecer a
relação do setor com as instituições de ensino superior e outras entidades
formativas devidamente credenciadas.
11. É urgente promover a literacia mediática, com
iniciativas no domínio da educação pré-universitária e junto da população em
geral.
12. Os jornalistas, reunidos no 4.º Congresso dos
Jornalistas Portugueses, assumem o compromisso de cumprir os deveres e as
responsabilidades decorrentes dos princípios ético-deontológicos do jornalismo
e das melhores práticas do exercício e regulação da profissão.
***
Um congressista considera, em artigo de imprensa, que o 4.º
Congresso dos Jornalistas “nasce de um equívoco”. A sua realização era uma
promessa da campanha eleitoral da atual direção do Sindicato. E esta, com a
preocupação de alargar o Congresso a todos os jornalistas, delegou essa tarefa
numa organização externa à direção do Sindicato. A comissão executiva da comissão
organizadora não contou com as entidades promotoras da realização do Congresso:
o Sindicato, Casa da Imprensa e Clube dos
Jornalistas. E, sendo preocupação inicial que o Congresso não fosse apenas
dos sindicalizados, o Congresso ficou quase sem orientação sindical.
Na opinião do aludido congressista, o Congresso deveria ter
sido um congresso sindical, com longos debates sobre o estado da arte, em que
se ouvissem e se discutissem soluções. Mas foi “uma mistura entre conferência
sobre o jornalismo e um congresso académico, onde se ouvem comunicações (umas dezenas) e em que se deixa pouco tempo para os jornalistas falar”.
Tendo-lhes sido reservadas, na melhor das hipóteses, 7 horas em 22 horas nas
sessões do Congresso, “os congressistas foram, na prática, sentados como
público”.
Sinais desta ausência de orientação sindical são, entre
outros:
- Só na terceira
sessão, a organização decidiu abrir aos congressistas o debate, em prejuízo dos
convidados;
- O Congresso fechou com uma mesa redonda com os patrões do
setor (poder económico) e com a ERC (poder
político);
- As 7 sessões do congresso dispersam-se por muitos assuntos,
sem tempo para se aprofundar nenhum deles: “O Estado do Jornalismo”, “O
jornalismo de proximidade e a profissão fora dos grandes centros”, “Afirmar
o jornalismo – independência e credibilidade”, “Ensino, acesso à profissão e
formação profissional” e “Regulação, Ética e Deontologia” ou
“Viabilidade
económica e os desafios do jornalismo”, que é, aliás, um tema de fronteiras ténues entre os
profissionais e as administrações...;
- As condições de trabalho e de produção de informação – que
deveria ter sido o tema nobre do congresso – foram assunto remetido para duas
horas do dia 14.
Ora, apesar de haver fatores exógenos à profissão e o império
dos grandes grupos económicos, é certo que os jornalistas são responsáveis por as
coisas terem atingido o estado a que chegaram. Porém, há jornalistas mais
responsáveis do que outros. E, pelos vistos, entre esses dois mundos, a
organização não teve em conta o estado de espírito das redações – em que todos
querem fazer ouvir a sua voz e denunciar o que se vive. Deu muito mais espaço –
quase sem contraditório – a quem, dia após dia, contribui para o aprofundamento
da crise atual do jornalismo.
Serão os jornalistas capazes de fazer a inversão do que denunciam nos
pontos 1, 2, 3, 5 e 6 da resolução que aprovaram por unanimidade? Conseguirão
levar a cabo o que prometem nos restantes 7 pontos da resolução? Se “sim”, há
jornalistas!
2016.01.16 – Louro de Carvalho
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