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hegou ao fim dos seus dias o político Mário Soares. Grande homem, grande
estadista, mas também portador de contradições, fonte de divergências e até
defeitos. Porém, tudo isto emoldura a figura pública em torno da qual muitos
hoje se vêm pronunciando.
O dia 7 de janeiro de 2017, fica a partir das 15 horas e 28 minutos como
um dia insólito na história dos óbitos das grandes figuras públicas. Os
comentários sucedem-se e todos se referem às virtudes democráticas do finado,
mas todos ou quase todos sublinham as divergências e as contradições, as
oposições e alguns dos seus erros (voluntários
ou não). Um
grande acontecimento democrático, que em grande parte a ele se deve: o da não
unanimidade ditada pelo pudor perante quem morre (alegadamente, estas figuras públicas são todas excelentes post mortem) ou pela força
político-policial e militar que impõe pensamento único e expressão
comportamento uniformes.
Se Portugal não tem de chorar obrigatoriamente por Mário Soares, como os
norte-coreanos pelo “querido líder” ou como os cubanos pelo “comandante”, nem
tem de dizer “morreu o homem”, como se dizia em 1970, quando se finou Salazar,
deve-o aos capitães de abril de 1974, em termos militares, e a Mário Soares, em
termos políticos.
Temos de convir que muitos dos testemunhos vertidos no dia de hoje para a
comunicação social raiam o politicamente correto ou mesmo o hipocritamente real,
quando outros exprimem a solidariedade da família político-partidária a que
Soares deu fundação e incremento. Todavia, alguns, a par das divergências ou
das cumplicidades, salientam a amizade, enquanto outros, por causa das
divergências, anotam quebra de amizade, embora quase sempre reatada.
Trata-se do homem que valeu pelo que foi e é, não por aquilo que alguns
quiseram que fosse.
É óbvio que Soares herdou de família a luta pelo republicanismo e
resistiu ativamente à onda que impôs do Estado Novo, criando e capitaneando uma
frente de resistência democrática e socialista, organizando a Ação Socialista
e, em 1973, cofundando o Partido Socialista no estrangeiro. Sofreu a prisão por
motivos políticos e o exílio, mas apressou-se a voltar para integrar a revolução,
em cujos primeiros passos de governação participou na condição de Ministro dos
Negócios Estrangeiros dos três primeiros governos provisórios e de Ministro sem
Pasta do quarto. Mas campeou em ações de rua e corporizou a chefia política
contra aquilo que era considerado o caminho radicalizado da revolução.
Pelo que apresenta de juízo equilibrado e justo sobre a figura e o papel
do ex-Presidente, fixo-me nalguns aspetos da mensagem de condolências do
Presidente da Assembleia da República.
Ferro Rodrigues, depois de exprimir o pesar pelo falecimento de Mário
Soares, afirma costumar “dizer-se dos grandes políticos que a sua vida se
confunde com a do tempo histórico que viveram” e assegura que, “no caso de
Mário Soares, não será exagerado dizer que é o último quartel do século XX
português que se confunde com ele”.
Depois,
sublinhou a sua luta “pela liberdade antes e depois do 25 de abril” e sustenta
que, “se a nossa geração já fez política em democracia, se as gerações dos meus
filhos e netos já cresceram num País livre, democrático e europeu, a ele muito
o devemos”.
E, na
vertente institucional, salienta que, enquanto “líder político e Deputado à
Assembleia Constituinte, Mário Soares foi um dos fundadores da democracia
portuguesa, iniciada pelo Movimento das Forças Armadas a 25 de abril de 1974,
assim reconhecido em Portugal e no estrangeiro”. Na sua condição de deputado
ativo na Assembleia da República, “prestigiou o parlamento e o parlamentarismo”
e, “como Primeiro-Ministro, esteve por detrás de grandes conquistas, como a
criação do Serviço Nacional de Saúde, da Concertação Social e da adesão à então
Comunidade Económica Europeia”.
O próprio
Dr. António Arnaut, que foi Ministro dos Assuntos Sociais no II Governo
constitucional, presidido por Soares, e que é considerado o pai do Serviço
Nacional de Saúde, hoje mesmo se referiu à ação de Soares nesta matéria. E, em
relação ao parlamentarismo, é de sublinhar que o PS entrou em acordo com o PSD
para, em 1982, na grande revisão da Constituição, se reforçar a componente
parlamentarista do nosso sistema semipresidencialista.
E, Ferro
Rodrigues, depois de referir que Mário Soares, “como Presidente da República,
afirmou Portugal e prestigiou o Estado, abrindo a presidência à sociedade e à
cultura”, declara que “o Portugal democrático, europeu e cosmopolita é o País
de Mário Soares” e que “Mário Soares foi um Grande Português”. Quem não se
lembra as presidências abertas e do pregão do direito à indignação, quando a
governança se impõe como fardo em vez de abrir caminho?
É óbvio que
o ex-Presidente não tinha um feitio muito tranquilo e cordato. Contudo, era
dotado dum jeito fabuloso para fazer amigos, mesmo quando as divergências
afloravam, que apreciava quando eram sustentadas e empenhadas, como não tinha escrúpulos
em ultrapassar a relação de amizade quando julgava estar em perigo a verdade em
que acreditava e os valores por que se batia. É natural que não tenha tido
razão em muitas opções ou que a tenha antecipado contra tudo e contra todos.
Todos erram, todos acertam, todos se deixam levar pelos seus caprichos e todos
– alguns mais que outros – se pautam por valores.
É célebre o
episódio do comício da Fonte Luminosa, em 1975, quando Soares, depois do que se
passou com o jornal República e o que
se estava a passar com a Rádio Renascença
– mercê do seu apoderamento por forças radicais – iniciou pública e
destemidamente a luta contra o gonçalvismo, dando o braço ao “grupo dos nove”,
na instituição militar, e às manifestações de católicos. E hoje alguém revelou
– não o sabia – do apoio não público de Mário Soares aos manifestantes que
foram encurralados, num dos dias do PREC, nas instalações do Patriarcado de
Lisboa, ao tempo.
Sublinharam
hoje alguns que o ex-Presidente redimensionou a vocação europeia do país e
campeou a adesão de Portugal à CEE, mas que não aceitou nem a captura acrítica
da soberania com os tratados de Nice e de Maastricht – da UE – nem o
neoliberalismo de que a troika foi o rosto no Portugal da crise. E, sendo o
homem do ecumenismo mundial, não se vergou à maneira austeritária como o mundo
reagiu à crise, criando pobres atrás de pobres.
***
Também o
cardeal-patriarca de Lisboa considerou que Portugal deve “muito” a Mário
Soares, antigo presidente da República Portuguesa, sobretudo nos “anos de
implementação da democracia”. Em declarações à agência Ecclesia, D. Manuel Clemente destacou o “contributo notável e
irrecusável” do responsável político, considerando que este é um tempo “para
agradecer e enaltecer” o seu papel para o “estabelecimento da democracia em
Portugal”.
Com efeito,
segundo o prelado lisbonense, as instituições democráticas em Portugal, como
“felizmente” hoje existem, devem muito a Mário Soares, “sobretudo nos anos de
implementação da democracia nos anos 70” do século XX. E precisou que a sua
ação pela democracia acontecera “já antes, no seu percurso pessoal, mas para
nós todos a partir dos anos 70 e daí em diante”.
Em 2007,
Mário Soares foi indicado para presidir à Comissão da Liberdade Religiosa,
criada pela Lei n.º 16/2001, de 22 de junho (cuja última redação lhe foi dada
pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro), cargo no
qual seria reconduzido em 2011.
Como Presidente
da República, Soares recebeu o Papa João Paulo II na viagem que o santo polaco
fez a Portugal, em 1991, e a quem solicitou intervenção pela causa de
Timor-Leste; e, já antes, a 27 de Abril de 1990, realizara uma visita oficial
ao Vaticano. Além disso, sobretudo enquanto foi Primeiro-Ministro, avistou-se
várias vezes, com o cardeal Agostino Casaroli, o Secretário de Estado do
Vaticano, de quem era amigo e a quem fez uma entrevista.
***
O
Primeiro-Ministro António Costa encontra-se na Índia em visita de Estado. Como
era natural, reagiu à notícia da morte do ex-Presidente, afirmando que foi
sempre considerado por nós como o rosto da liberdade. Mais comunicou que o
Governo decretaria o luto nacional de três dias, a contar do próximo dia 9 de
janeiro, e que o funeral teria honras de Estado.
Porém, o
Primeiro-Ministro e Secretário-Geral do PS não cancelará a visita de Estado à Índia que hoje se iniciou e vai até sexta-feira, no
que tem o apoio do Ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, que
também se pronunciou comovido pelo finado.
A questão,
que foi levantada a muitos protagonistas políticos, foi contornada com
suposições sobre um eventual gosto do estadista falecido e sobre comportamento
análogo por ele corporizado em determinada ocasião.
Assim,
Santos Silva disse que, se Mário Soares pudesse saber que o Primeiro-Ministro
não tinha cancelado a visita, “ficaria contente porque sempre pôs o interesse
do Estado e do povo português acima de quaisquer outros”. Além disso, o próprio
Dr. Mário Soares fez opção semelhante em circunstâncias absolutamente dramáticas,
em 1985, quando estava de partida para a visita de Estado à Hungria e à
Holanda, ao saber que o filho, João Soares, tivera um desastre de avião quando
partia da Jamba (quartel-general de Savimbi em Angola), estando num hospital da África do Sul às portas da
morte. Manteve a viagem e Maria Barroso, a mãe, partiu para a África do Sul.
A este
respeito, Joaquim Vieira, na sua biografia
sobre o antigo Primeiro-Ministro e Presidente da República (Mário
Soares: Uma Vida, Esfera dos Livros, 2013), relata que, na Hungria, o Chefe de Estado
“desdobrava-se entre as funções de Estado e o drama familiar”, acompanhado o
estado de saúde do filho por contactos telefónicos com Maria Barroso. Só depois
do regresso da visita à Holanda partiu para a África do Sul a visitar o filho,
que, entretanto, tinha tido uma melhoria do seu estado clínico.
Não me
parece aplicável à visita de Costa um hipotético gosto do extinto estadista.
Por outro lado, a relação de Soares com o filho era uma relação familiar.
Assim, o Primeiro-Ministro teve ou teria de avaliar a pertinência do
cancelamento ou da continuação da visita pela índole e interesse nacional da
própria visita e não por outros quaisquer critérios. De resto, Costa está fora,
mas não estamos órfãos de governação.
Quanto a
Soares, há que dizer que morreu um homem político controverso, mas
incontornável.
Paz ao seu
espírito!
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