Do meu ponto de vista, a canonização de Santa Teresa
de Calcutá, a 4 de setembro de 2016, poderá ter sido o facto mais marcante da
Igreja Católica do ano de 2016. Obviamente não o será do ponto de
vista da teologia pura ou mesmo da pastoral. No entanto, vem consagrar a
vertente da opção preferencial pelos
pobres em que a Igreja melhor se revê no seu ser e na sua missão; e, por outro
lado, salienta o impacto que a ação de alguém que se dedique ao cuidado dos
mais pobres, doentes, oprimidos e descartados – aliada à profunda vivência
cristã – tem na dinâmica da luta não violenta pela justiça, pedindo a todos o
contributo segundo as suas posses para acorrer a cada um segundo as suas
necessidades. É claro que a sua elevação à honra universal dos altares não
desprega nem da vida religiosa na dimensão contemplativa nem na dimensão ativa
(Madre Teresa
corporiza as duas dimensões) nem do
dinamismo do Ano Jubilar da Misericórdia. Aliás, o Francisco, na linha dos seus
predecessores mais próximos, considerou-a um ícone da misericórdia; e a sua
canonização ocorreu no último trimestre do Ano Jubilar por ocasião do Jubileu dos operadores e dos voluntários da
misericórdia.
A seguir a este jubileu, foram-se celebrando, no
âmbito do Ano Jubilar da Misericórdia, outros jubileus emblemáticos, sem
conotação com a hierarquia: o jubileu dos catequistas, de 23 a 25 de setembro;
o jubileu mariano, de 7 a 9 de outubro; o jubileu dos encarcerados, a 5 e 6 de
novembro; e o jubileu das pessoas socialmente excluídas, de 11 a 13 de novembro.
Sobre Santa Teresa de Calcutá e do desafio que para
nós constitui a sua vida, declarou Francisco na homilia de 4 de setembro:
“Estamos
chamados a pôr em prática o que pedimos na oração e professamos na fé. Não
existe alternativa para a caridade: quem se põe ao serviço dos irmãos, embora
não o saibamos, são aqueles que amam a Deus (cf 1 Jo 3,16-18; Tg 2,14-18). A vida cristã, no entanto,
não é uma simples ajuda oferecida nos momentos de necessidade. Se assim fosse,
certamente seria um belo sentimento de solidariedade humana, que provoca um
benefício imediato, mas seria estéril, porque careceria de raízes. O
compromisso que o Senhor pede, pelo contrário, é o de uma vocação para a caridade com que cada discípulo de Cristo põe
ao seu serviço a própria vida, para crescer no amor todos os dias.”.
E, no momento da
recitação do Angelus, disse aos
voluntários e agentes da misericórdia:
“É com
carinho que saúdo todos vós, estimados voluntários e agentes de misericórdia.
Confio-vos à proteção de Madre Teresa: ela vos ensine a contemplar e adorar
todos os dias Jesus Crucificado, para o reconhecer e servir nos irmãos em
necessidade. Peçamos esta graça também para aqueles que estão unidos a nós
através dos mass media, de
todas as partes do mundo.”
Mas, se com a canonização de Madre Teresa o Papa
conseguiu alertar para a síntese que os voluntários da misericórdia têm de
fazer entre a contemplação e adoração de Cristo crucificado e o reconhecimento
do mesmo nos irmãos em necessidade a quem é preciso servir, a 16 de novembro, na
canonização de sete beatos, enalteceu todos aqueles que “permaneceram
firmes na fé, com o
coração generoso e fiel”. Vale a pena recordar daquela homilia de 16 de
outubro o que Francisco disse destes espelhos da misericórdia divina posta em
ação:
“Os Santos são homens e mulheres que se entranham
profundamente no mistério da oração. Homens e mulheres que lutam mediante a oração,
deixando rezar e lutar neles o Espírito Santo; lutam até ao fim, com todas as suas
forças; e vencem, mas não sozinhos: o Senhor vence neles e com eles. Também
estas sete testemunhas, que hoje foram canonizadas, travaram o bom combate da
fé e do amor através da oração. Por isso permaneceram
firmes na fé, com o
coração generoso e fiel. Que Deus nos conceda também a nós, pelo exemplo e
intercessão delas, ser homens e mulheres de oração; gritar a Deus dia e noite,
sem nos cansarmos; deixar que o Espírito Santo reze em nós, e orar apoiando-nos
mutuamente para permanecermos com os braços erguidos, até que vença a
Misericórdia Divina.
***
Madre Teresa ficou conhecida como a “Santa das
Sarjetas”, mas é acusada por críticos de promover a pobreza. Era o que faltava
não se levantarem os picuinhas da benemerência. Na verdade, enquanto naquela
manhã de domingo Francisco proclamava a santidade de vida da benemérita freira
católica e todo mundo comemorava o faustoso evento, alguns distorciam a
realidade segundo as suas categorias mentais, sociais, ideológicas e económicas.
Diante de milhares de pessoas na praça de São Pedro, o
Papa engrandecia Teresa, que se ajoelhava “diante dos que foram deixados para
morrer nas margens das estradas, enxergando neles a dignidade dada por Deus”.
Reconheceu que a Madre “se fez ouvir pelas potências do mundo, para que elas
reconheçam a sua culpa pelos crimes da pobreza que criaram”. Porém, os críticos
questionam a comprovação dos ‘milagres’ reconhecidos pela Igreja e consideram a
sua canonização como símbolo dum “triunfo da fé religiosa sobre a razão e a
ciência”. Esquecem que os ditos milagres – que apenas confirmam a veridicidade
da santidade de vida e devem ser atribuídos a Deus, que tudo pode – não são o
móbil mais importante das canonizações, pois ignoram o instituto da canonização
equipolente. E, sobretudo, ignoram a cumplicidade normal entre fé e razão,
entre fé e ciência – tantas vezes afirmada neste mundo dos séculos XX e XXI.
Teresa foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz em
1979. E não parece que a Academia se tenha vergado alguma vez à falta de
ciência ou à pseudociência. Afinal, o que é a ciência? Será que os críticos
ainda estão apegados ao conceito redutor de ciência instaurado pelo
positivismo?
Conhecida pela construção de hospitais, casas de repouso,
cozinhas, escolas, colónias de leprosos e orfanatos, era chamada a “Santa das
Sarjetas” pelo seu trabalho nas regiões mais pobres de Calcutá. E a sua ação
estendeu-se praticamente a todo o mundo, sendo que a Congregação das Missionárias
da Caridade, fundada por Madre Teresa, reúne atualmente mais de 3 500 religiosas
no mundo inteiro e tem um grande número de missionários da caridade.
Todavia, apesar da legião de fiéis e admiradores, existe
um sério número de detratores.
O falecido autor britânico Christopher Hitchens, um
dos principais, descreveu Teresa como “uma fundamentalista religiosa, uma
agente política, uma pregadora primitiva e uma cúmplice dos poderes seculares
mundanos”. No seu livro “A Posição Missionária: Madre
Teresa em teoria e prática”,
lançado em 1995, e no documentário “O Anjo do Inferno”, critica o que denomina de
“cultura de sofrimento” e afirma que ela criou um imaginário de “buraco do
inferno” da cidade que a acolheu, além de se ter tornado “amiga de ditadores”.
Também o físico londrino Aroup Chatterjee publicou, em
2003, uma crítica a Teresa depois de ter feito pelo menos 100 entrevistas com
pessoas envolvidas com a congregação criada por ela, apontando o dedo à alegada
“espantosa falta de higiene” nos centros de saúde administrados pelas
Missionárias de Caridade – onde se reutilizavam agulhas, por exemplo – e
descrevendo os locais em que o grupo cuidava de doentes como “confusos e mal
organizados”. E considera os milagres “baratos e infantis demais até para
questionar”.
E o cubano Hemley Gonzalez tornou-se crítico depois de
sair de Miami para trabalhar como voluntário numa das casas de Teresa em
Calcutá por 2 meses, em 2008. Diz-se chocado com o modo “terrivelmente
negligente como esta missão de caridade opera e as contradições entre a
realidade e a forma como ela é percebida pelo público”. Hoje, através da sua
organização de caridade humanista, sem ligação à Igreja Católica, critica os
alegados pensamentos retrógrados:
“Ser contra o controlo da natalidade
e o planeamento familiar, a modernização de equipamentos e uma miríade de
iniciativas que solucionam problemas causados pela pobreza são coisas que fazem
Madre Teresa não ser 'amiga dos pobres', como dizem, mas uma pessoa que promove
a pobreza”.
Também o indiano Sanal Edamaruku questionou os
milagres que levaram Teresa à canonização. De facto, para ser considerado santo
ou santa pelo Vaticano, ordinariamente, a pessoa precisa de ter alguns
“milagres” atribuídos a ela, após a sua morte, por conta de preces que foram
feitas em seu nome. Quando situações como essa acontecem, elas são
“verificadas” por meio de provas exigidas pela Igreja antes de serem aceites
como milagres. Normalmente, os casos são de curas ou recuperações de doenças
que acontecem sem aparente explicação médica.
Assim, 5 anos após a morte de Madre Teresa, o Papa
João Paulo II aceitou o que seria o seu primeiro milagre – a cura duma mulher
de uma tribo de Bangladesh, Monica Besra, que tinha um tumor abdominal, cura que
teria sucedido devido a intervenção sobrenatural. Isto abriu caminho para a
beatificação da Madre em 2003. Em 2015, o Papa Francisco reconheceu um segundo milagre,
que envolveu a cura dum brasileiro com tumores no cérebro em 2008.
Ora, Edamaruku questionou o primeiro milagre,
questionando como pode uma mulher ser curada por foto de freira colocada sobre o
seu estômago quando há provas de que recebeu tratamento médico contra a doença.
Porém, alegando que hoje “a maioria das pessoas não quer mais negar os feitos
de Madre Teresa porque ela tem uma imagem de alguém que sempre trabalhou para
os pobres”, declara que não tem nada contra ela e que não é “antipobre” (como temem
ser chamados os opositores da Santa), mas sustenta
que “dizer que alguém faz milagres não é científico”.
A iniciativa mais significativa proveio de alguns académicos
e trabalhadores sociais indianos, que pediram ao Ministro das Relações
Exteriores, Sushma Swaraj, que reconsiderasse a decisão de ir ao Vaticano para
prestigiar a cerimónia de canonização de Madre Teresa, pois aduziam que se
tornava espantoso que “o ministro dum país cuja Constituição pede aos seus
cidadãos para terem um pensamento científico aprove uma canonização baseada em milagres”,
No entanto, alguns contestam tal argumento no
pressuposto de que “provas científicas e fé são coisas diferentes”.
***
Quanto a milagre, basta dizer que a Igreja apenas
aceita como tal o que os médicos atestam não decorrer da ciência (apesar da
aplicação da terapêutica possível) e que só a
fé permite aceitar o milagre, o que a razão podia acolher, ao menos, quando não
tem outra explicação.
No respeitante à alegada falta de condições, os
críticos mostram nunca terem trabalhado em hospitais de campanha nem esterilizado
material cirúrgico, optando pelo descarte, e que a deficiência de condições se
colmata pela correção e não pelo encerramento de unidades de cuidados de saúde
e/ou de educação.
Acresce apontar a hipocrisia iníqua dos que pensam
reduzir a pobreza com a aplicação das teses neomalthusianas. Controlar a
natalidade pela pílula (com efeitos cancerígenos, antinidificadores ou mesmo
abortivos) traz mais consequências para a
saúde que vantagens; e fazê-lo pela via do preservativo pode levar à
ineficácia. Mas ambos os recursos engrossam a indústria e o comércio. E os
grandes interesses não criam só a pobreza, cavam a miséria para nutrir os
grandes.
***
Assim, é de incrementar a dinâmica de Madre Tereza até
que os poderes se abram à Justiça e à equidade, pois todos somos filhos de Deus
e irmãos universais! Que sejam estes os propósitos para 1
de janeiro, Dia Mundial da Paz e da
fraternidade universal, com a Santa Mãe de Deus!
2016.12.31 – Louro de Carvalho
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