No rescaldo dos terríveis atentados terroristas verificados na capital francesa na passada sexta-feira, 13 de Novembro, é de supor uma reacção anti-religiosa em França e em todo o mundo livre. Depois de ultrapassada a dor inicial e a profunda indignação por tão abjectos actos, de que há tantas vítimas a deplorar, é provável uma certa relutância pela religião professada pelos terroristas e, em geral, por todas as crenças, enquanto potenciais factores de desestabilização social.
Não seria muito de estranhar que, à pergunta sobre a razão destes atentados, haja quem responda, como se de uma evidência se tratasse:
– É a religião, estúpido!
Sim, há de facto um elemento religioso na génese destes crimes, mas seria superficial e injusto considerar que, em geral, todas as religiões ou, em particular, a islâmica, são de facto incompatíveis com a sociedade democrática e pluralista. As generalizações, que são tão redutoras como sedutoras, são também muito perigosas. Um judeu, que seja assassino, não faz criminoso todo o seu povo, como um árabe terrorista também não converte em homicidas os seus compatriotas.
Aliás, há muitos muçulmanos que não se revêem naquele extremismo, por muito que este se afirme devoto de Alá e do seu profeta. Por maioria de razão, as outras religiões não têm por que ser objecto de suspeição, por muito que nos doa, e certamente dói, que uns terroristas, invocando o santo nome de Deus, tenham morto dezenas de cidadãos franceses, como já antes acontecera em Londres, Madrid e Nova Iorque. Pior ainda foi a terrível matança de duzentas crianças sírias, agora noticiada, com imagens que não é possível ver sem um estremecimento de horror.
Há quem queira aproveitar-se destes gravíssimos acontecimentos para exigir uma sociedade laica e intolerante para com todas as religiões, na medida em que este tipo de agressões pode ocorrer em qualquer parte. É verdade que sempre houve grupos religiosos fundamentalistas, cujas práticas foram, ou são, profundamente perturbadoras da paz. Mas seria fazer o jogo dessas facções reconhecer como autêntica a sua religiosidade que, na realidade, mais não é do que um disfarce para o seu criminoso propósito.
Os movimentos terroristas dos anos 70 – recordem-se as Brigadas Vermelhas e o grupo Baader-Meinhof, por exemplo – também se apresentavam com a pretensa legitimidade de quem age em nome da justiça social, como exércitos revolucionários ao serviço do proletariado. Mas essa fachada mais não era do que o pretexto para uma prática assassina, responsável pela morte de inúmeras vítimas inocentes.
Será que a motivação, essencialmente política, desses movimentos terroristas é suficiente para crer necessariamente conflituosa a intervenção pública dos cidadãos e portanto que, a bem da paz e da segurança dos povos, há que abolir essa participação, ou seja, a democracia?! Foi, de facto, assim que procederam os diversos totalitarismos, quer de direita, como o fascismo e o nazismo, quer de esquerda, como o comunismo. Mas esse seria um remédio pior do que a doença: não se vence o terrorismo com o totalitarismo, mas com mais e melhor democracia. É saudável a diversidade de pontos de vista políticos, desde que não afecte as liberdades, direitos e garantias fundamentais.
Não será exagerado afirmar que o regime democrático pluralista, tal como acontece na quase totalidade dos países europeus, é um legado da matriz cristã da sua cultura. Como disse Bento XVI, no Bundestag, “foi na base da convicção da existência de um Deus criador que se desenvolveu a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana de cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir”. Outros povos, que não tiveram este antecedente cristão, também não têm hoje uma tão arraigada prática democrática, nem uma tão consistente vivência dos direitos fundamentais. Não se combate a agressividade do fundamentalismo religioso com o laicismo, nem muito menos com a abolição das crenças, mas com mais e melhor formação para a liberdade, também religiosa, e para a solidariedade social.
Portanto, se é inegável que o factor religioso está relacionado com algumas manifestações espúrias de violência, também é verdade que, principalmente, inspira uma cultura da liberdade e da responsabilidade cívica, patente em inúmeras instituições de assistência social e de serviço aos mais desfavorecidos. À pergunta sobre a razão de tantos hospitais, tantos asilos e orfanatos, tantas creches, escolas e universidades, tantas leprosarias, dispensários médicos e lares de terceira idade cristãos, há que responder como dizia o outro:
– É a religião, estúpido!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada, aqui
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