A propósito do Natal, várias
considerações se fazem de diversas proveniências. Assim:
O papa, na sua catequese do
passado dia 18 de dezembro, considera, em primeiro lugar que, “se no Natal Deus
se revela não como alguém que está no alto e que domina o universo, mas como
Aquele que se abaixa, que desce sobre a terra pequenino e pobre, significa que
para sermos semelhantes a Ele não devemos colocar-nos acima dos outros mas, ao
contrário, abaixar-nos, pormo-nos ao seu serviço, tornarmo-nos pequeninos com
os pequeninos, pobres com os pobres”. Ora, se o cristão “não quer humilhar-se
não aceita servir”, mas, pelo contrário, “se vangloria em toda a parte”,
concluiremos que “ele não é cristão, mas pagão”, porque “o cristão serve,
abaixa-se”. Depois, vem a segunda consideração papal: “se, através de Jesus,
Deus se comprometeu com o homem a ponto de se tornar como um de nós, quer dizer
que tudo o que fizermos a um irmão ou a uma irmã, a Ele o fazemos. Foi o
próprio Jesus quem no-lo recordou: quem alimenta, acolhe, visita e ama um
destes mais pequeninos e mais pobres entre os homens, ao Filho de Deus o faz”.
Esta é assim uma visão da
História bem diferente daquela que os anais da convenção registam, sobretudo se
arredarmos da historiografia aquelas dimensões que ultrapassem a mundividência
positivista, como seja a vertente providencialista (reservando a Deus o papel
de comando e controlo dos factos), a vertente de missão universalista de pendor
espiritual reservada a um povo entregue a uma liderança carismática (visível em
Pessoa, Vieira ou Bandarra e Manuelinho de Évora), uma vertente popular visível
em Fernão Lopes ou uma vertente proletária em que o chefe sonha, comanda,
mobiliza à força e controla, mas quem dá corpo à obra é o povo anónimo, a
arraia miúda, os trabalhadores explorados e mal pagos (presente, por exemplo,
na obra de Cesário Verde ou na de Saramago).
Se analisarmos as versões nacionalistas
da historiografia, veremos a escrita da História ancorada na perspetiva dos
vencedores – heróis, inteligentes, estrategas ou bafejados pela sorte divina –
ficando reservados aos vencidos os atributos da cobardia, da traição, da
fraqueza ou da imbecilidade.
Anselmo Borges, no DN de 21 de
dezembro, cita um testemunho de Kant, de poucos dias antes da morte, a 12 de
fevereiro de 1804, que, na opinião do teólogo filósofo, diz bem da grandeza de
homem daquele filósofo: "Senhores, eu não temo a morte, eu saberei morrer.
Asseguro-vos perante Deus que, se sentisse que esta noite iria morrer,
levantaria as mãos juntas e diria: Deus seja louvado!”. E Borges interroga-se
se o que é mais importante e decisivo não é a dignidade e a felicidade de
todos. E assegura-nos que o desígnio do papa será congruente com aquele
postulado: “renovar a Igreja, evangelizá-la, para ela poder, por palavras e
obras, evangelizar o mundo: levar a todos a notícia boa e felicitante do Deus
de Jesus Cristo”.
Recordando a recente, primeira e
extensa exortação apostólica (de 24 de novembro), entende o articulista que o
programa do pontificado franciscano é simplesmente o Evangelho. E enuncia o
método mais adequado, alcandorado ao patamar de caminho iluminado e iluminante:
“ler o mundo a partir de baixo, dos pobres, dos excluídos, e agir em
consequência, isto é, colocando-se no seu lugar e, a partir desse lugar, que é
o lugar de Deus, cumprir a sua missão”. Para que todos possam realizar a
dignidade de homens e mulheres e alcançar a alegria e a felicidade, para lá do
consumismo materialista reinantes, "Deus quer a felicidade dos Seus filhos
também nesta Terra, embora estejam chamados à plenitude eterna", escreve
Francisco.
Impõe-se, nesta ótica, a leitura
da História, segundo a missão da Igreja, a partir dos não vencedores, ou seja,
a partir das vítimas, dos perdedores dos menos expostos na ribalta dos
acontecimentos. Porém, isto implica a revolução das mentalidades, o apuramento
das consciências, o alargamento do horizonte, ou seja, a metanoia ou conversão,
na linha da boa nova evangélica.
Então, o centro da discussão em
Igreja não será nem a Igreja em si nem os dogmas nem as leis (temas que terão a
sua importância, mas que não podem ser o essencial), mas Cristo, o Evangelho e
as pessoas. É necessário que a Igreja saiba o que dizer de si própria, o que
terá de dizer ao mundo e o que terá de perceber do mundo. Isto porque tem de o
conhecer, interpretar e transformar (no entendimento de Pio XII) segundo o
coração de Deus.
"Quando a vida interior se
fecha nos próprios interesses” – diz-nos Francisco – “deixa de haver espaço
para os outros, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do
Seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e
permanente, que correm também os crentes". E, em tom esclarecedor,
acrescenta que "uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem individualista –
comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar
a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela." E arrisca:
"Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas
estradas fora a uma Igreja doente pelo fechamento e a comodidade de se agarrar
às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro e que
acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Mais do que o temor de
falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos
dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis,
nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão
faminta" (…) "sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um
horizonte de sentido e de vida", como aponta o Cisto compassivo – Misertus
est eis” (Mt 9,36); misereor super turbam (Mc 8,2).
E Francisco ambiciona:
"Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os
costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se
tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual do que à sua
autopreservação." Para tanto, o papa, na linha de Dom Frei Bartolomeu dos
Mártires, propõe uma “eminentissima reformatio” que a todos convoque: "uma
corajosa reforma, que toque tanto o espírito como as estruturas”.
Dom Manuel Rodrigues Linda, o
novo bispo das Forças Armadas e de Segurança assume, no último n.º do semanário
digital Ecclesia (19 de dezembro), um
tom muito contundentemente critico, ao afirmar que “é necessário ter
preocupação pelas pessoas que vivem sob um império que não tem bandeira, nem
território mas ‘capital e capitais’ chamado Fundo Monetário Internacional
(FMI)”. E vai à raiz do problema quando explicita a razão da crise de brutais
consequências: “O povo sabe que este império (FMI) possui uma lei fundamental
que aplica no mundo, ‘chapa cinco’, desde os anos sessenta”, que “esmaga os
salários para ‘recapitalizar’ as empresas ou os donos” (interroga-se).
Segundo o prelado, o FMI, “em
nome de uma deusa estranha chamada ‘competitividade’, acha inconcebível que se
aumente 15 euros no salário mínimo”, salientando que os grandes consideram
“crime de lesa-majestade que um qualquer gestor de pacotilha, colocado à frente
das empresas públicas pelos ‘bons serviços’ prestados ao ‘partido’, aufira
menos de sete, dez ou quinze mil euros por mês, ou mais! Ou trinta ou quarenta
mil!” – acrescenta explicando que “quem manda aqui é um ‘império’ sem bandeira
nem território, mas com capital e capitais”. “E as pessoas? E o povo, meu
Deus?” – questiona-se o antístite. E relê nas recentes estatísticas a crueza de
seus dados: que Portugal foi o país da Europa que mais viu agravar-se o fosso
entre ricos e pobres; que estes o são cada vez mais e que aqueles prosperam a
olhos vistos; que estão a matar a classe média; que nunca se viu por aí tantos
automóveis ‘topo de gama’ ao passo que o resto dos concessionários quase não se
estreia nas vendas”, refere entre outros exemplos.
O bispo nega ainda que esta
situação seja nova porque, também há dois mil anos, um outro império, o
romano, já “era especialista em tirar”, não propriamente “aos pobres para dar
aos ricos” (foi Marx um dos primeiros a falar assim), mas “tirar a todo o
mundo escravizado para dar aos cidadãos romanos da urbe.
Na reclamação sobre a situação
evocada e sob a égide do Menino que chegou “fraco e indefeso”, mas “meigo e
amigo de todos”, nesta «normalidade anormal», impõe-se que haja Natal de e da
humanidade, como anunciaram os anjos aos pastores de Belém pela noite adentro
"Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que será a de todo o
povo: nasceu-vos um Salvador", com o hino espetacular “Gloria in excelsis Deo et in terra pax
hominibus bonae voluntatis” (Lc 2,14)!
Louro de Carvalho
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