Ouvimos muitas vezes dizer que “ninguém dá o que não tem”. Mas creio que é mais verdadeira a afirmação de Urs von Balthasar quando escreve que “o privilégio do cristão é poder dar mais, infinitamente mais, do que aquilo que possui”. Vou ver se consigo explicar-me. Lembro ainda bem quanto me escandalizou, nos meus anos de estudante de teologia, a conferência de um sacerdote, um apóstolo brilhante e muito conhecido então — que nos dizia que não era preciso sermos santos para sermos eficazes apostolicamente. A ideia pareceu-me então disparatada, e continua a parecê-lo no tom em que aquele conferencista o dizia: como se a inteligência, a técnica oratória, a picardia pudessem substituir a santidade e o amor. Nunca acreditei nem na inteligência nem na técnica referidas ao mundo da graça. São o que a forma é para o pudim: se este for feito com ovos podres, ninguém o conseguirá comer por melhor que a forma seja. Sempre me interessará mais a carga interior daquilo que se diz do que os adjectivos que o ornamentam. Embora pense que uns conteúdos sérios exigem do orador ou do apóstolo que tome muito a sério os métodos de transmissão. Sabendo, porém, que são apenas isso: simples métodos.
Há na ideia, no entanto, uma parcela de verdade, e muito mais ainda na fórmula de Balthasar. Trinta anos de ministério ensinaram-me que cada um pode dar muito mais do que pessoalmente possui. E isto por uma razão elementar: a rigor, no mundo da graça nenhum homem dá nada. Deus é o único que pode dar, só ele. A experiência de qualquer sacerdote ou de qualquer cristão é que, se ele não puser demasiados obstáculos, Deus dá através de nós coisas que nós nem conseguimos sonhar. E o que Bernanos chamava “o doce milagre das mãos vazias”, através das quais pode passar a torrente de Deus.
No terreno sacramental isto é por demais evidente: que são as minhas mãos para absolver, a minha palavra para consagrar? Alguém “funciona” dentro de mim para que isso “saia”, como o vinho da garrafa sem ela o ter gerado ou fabricado.
Mas também se dá o mesmo noutros terrenos mais misteriosos: que cristão não semeou esperança nos dias em que a julgava perdida? Quantas vezes demos alegria a alguém e nos afastámos depois de pensar que éramos nós quem mais precisava dela?
Acontecem por vezes coisas misteriosas. Um dia aproxima-se alguém de ti, e declara-te que há vinte anos se alimenta de uma frase que tu disseste. Perguntas de que frase se trata, e quando a escutas ias jurar que nunca te passou pela cabeça, que a disseste casualmente. Repara como a flecha foi directa ao alvo que dela precisava.
Qualquer sacerdote sabe que algumas vezes preparou uma conferência ou uma homilia com todo o cuidado, e depois, ao falar, sobe-lhe aos lábios uma frase na qual nem sequer pensara. E logo se verifica que era dessa que algum ouvinte estava a precisar.
Veio uma vez um desconhecido agradecer-me um artigo que o ajudou a resolver em casa uma crise muito séria. E eu nem me lembrava de ter escrito artigo algum sobre esse tema. Terei eu um anjo da guarda que escreve e assina artigos que eu não elaborei? Ou escrevia eu doutra coisa, e aquela família — que precisava de uma resposta — encontrou-a onde o autor nem pensara? Vamos lá sabê-lo?!
Não sei se tudo isto será heresia. A mim, pelo menos, ajuda-me. Se tivesse de esperar por ser santo para começar a falar de Deus às pessoas, ainda agora estava calado. Se só pudesse escrever sobre a alegria, quando tudo corre bem, passaria a maior parte da vida em jejum de escrita. Compreendo que tenho obrigação de ter as mãos cheias, porque Deus o merece, mas não desanimo quando as vejo vazias. Encanta-me a ideia de ser uma trombeta através da qual alguém, mais poderoso do que eu, está a soprar. E de tantas graças passarem pelas minhas mãos... alguma ficará comigo.
O nosso problema está então em sermos bons transmissores, tornar-nos transparentes, para que possa ver-se através de nós o Deus escondido que levamos dentro. E depois partilhar sem mesquinharias o pouquinho que temos — essa migalha de fé, essa gota de esperança, esses gramas de alegria sabendo que não faltará quem venha multiplicá-la como o pão do milagre. Seguros de que a pequena chama de um fósforo pode atear uma grande fogueira. Não porque o fósforo seja importante, mas porque a chama é infinita.
In Razões para o amor
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