terça-feira, 1 de julho de 2014

NADA DE IMPORTANTE ACONTECEU NO BRASIL


A avaliar pelas reacções dos dirigentes federativos, do seleccionador Paulo Bento e de vários dos seus colegas de profissão, nada de importante aconteceu no Brasil. Apenas uma competição que não nos correu bem, mas que já lá vai — agora é preciso é concentrarmo-nos no Euro-2016. Permito-me discordar. Acho que a nossa participação foi má de mais e levantou questões que devem ser discutidas e devem ter consequências. Eis algumas dessas questões:

A BASE DE RECRUTAMENTO

Por mais que se critiquem as opções e exclusões de Paulo Bento, a verdade é que não havia muito mais por onde escolher. Esta selecção, da qual já disse várias vezes que é das mais fracas de que me lembro, não tinha muito mais alternativas. Sendo certo que Portugal é um pais de futebol, onde sempre nasceram e cresceram grandes jogadores, isto levanta um óbvio problema de base de recrutamento sobre o qual é necessário meditar. Será possível continuar com uma política de formação que, nas camadas jovens, já tem um excesso evidente de estrangeiros? Não será necessário e possível limitar o número destes nos escalões até aos sub-21, pelo menos?

AS ESCOLHAS

Porém, e sem me desdizer, julgo que a selecção eleita por Paulo Bento reflecte a obstinada teimosia e conservadorismo dele. Nomes como os de Quaresma, Danny ou Bebé, para só falar da frente de ataque, tinham lugar no avião para o Brasil. Mas é sabido que Bento escolhe segundo critérios de fidelidade pessoal e não de qualidade ou momento que os jogadores atravessam. Só isso justifica a aposta inamovível em jogadores claramente fora de prazo ou de forma (e até mesmo de condição física) e cujos nomes, por delicadeza, me abstenho de enumerar. A imensa responsabilidade que recai sobre os ombros do seleccionador foi usada por Paulo Bento para recompensar e garantir lealdades, em interesse próprio. É a escola de Scolari, mas com a enorme diferença de a base de recrutamento estar longe de ser comparável. Aliás, por aquilo que sigo nos jornais, raramente me dou conta de que o seleccionador acompanhe ao vivo outros jogos que não os dos grandes (onde 90% dos jogadores são estrangeiros), que frequente jogos dos outros clubes, das camadas jovens ou que, menos ainda, acompanhe o desempenho dos jogadores portugueses a actuar no estrangeiro — em Itália, Inglaterra, Rússia, Chipre, Turquia, Espanha, etc. A sua selecção parece feita desde sempre e para sempre.

A PREPARAÇÃO

Foi verdadeiramente chocante constatar até que ponto a selecção levada ao Brasil estava impreparada para o Mundial, sob qualquer ponto de vista: físico, anímico, emocional, táctico, estratégico. Uma armada completamente à deriva, que não parecia saber ao que ia. Como, que se saiba, tudo foi disponibilizado ao seleccionador, em termos de meios, de conforto e de luxos, para que tal não sucedesse, chegando mesmo a renovar-se o seu contrato antes do final do prazo e do Mundial para que nada o perturbasse, não há, à vista, desculpa alguma para o rotundo falhanço. E claro que nem tudo será da responsabilidade dele, mas uma vez que nada foi até agora convenientemente esclarecido, sobram para cima do comandante todas as responsabilidades.

0 PLANEAMENTO

Creio ter sido o primeiro, ou dos primeiros, a levantar a questão da localização do quartel-general da Selecção em Campinas, obrigando a mais horas de voo do que as necessárias em função dos locais dos jogos e fazendo com que os jogadores treinassem em condições bem diferentes daquelas que já se sabia que iriam encontrar em Manaus e Salvador. Isso, mais a passagem prévia pela costa leste dos Estados Unidos, cuja lógica de todo me escapou, nunca foram esclarecidas e ninguém pode saber até que ponto contribuíram ou não para a diferença abissal de preparação com que nos apresentámos no primeiro jogo, relativamente aos alemães.

A CONDIÇÃO FÍSICA

É absolutamente consensual entre toda a gente que a equipa portuguesa chegou ao Mundial num lastimável estado físico, que o número mais do que anormal de lesões e a moleza mostrada em campo exuberantemente atestaram. Se bem percebi, o médico da Selecção veio dizer que já em Janeiro terá apresentado um relatório onde se preveria a possibilidade de tal cenário. Parece-me cedo de mais, a cinco meses de distância, mas o que não há dúvida é que um conjunto de jogadores a rebentar pelas costuras ou a arrastar-se em campo só pode resultar de todos os factores envolvidos na preparação física: a parte médica, a parte de recuperação, a parte dos treinos. E não é simplesmente aceitável que isto fique por esclarecer e que daqui não se extraiam as consequências que se impõem.

OS ONZES

De jogo para jogo, Paulo Bento só mexeu quando algum jogador rasgava ou era castigado. Fosse qual fosse o adversário, o resultado procurado, as condições de clima ou o estado físico dos jogadores, o seu onze já estava determinado na sua cabeça desde que em Novembro passado garantimos o bilhete para o Brasil. Acabou por utilizar quase todos os jogadores que levou, mas apenas porque circunstâncias alheias à sua vontade o impuseram. Paulo Bento não é conservador: conservadora era a minha avó. O que ele é é um homem de ideias fixas, confiante que a realidade acabará sempre por se render a elas. Viu-se...

0 FUTEBOL JOGADO

Julgo que teremos dividido com a Grécia o pior futebol visto neste Mundial, em que se tem visto tão bom futebol - jogado até por selecções que estavam 20 ou 30 lugares abaixo de nós no ranking da FIFA. Mas, mesmo assim, a Grécia quase que chegava aos quartos, enquanto que nós nunca demos a sensação de poder ir além do que fomos, excepto para aqueles espíritos patriótico-optimistas que acham que basta querer e acreditar para, quem sabe até, chegar ao próprio título. Não se viu nada em campo que pudesse alimentar sombra de tais expectativas - nem sequer contra a equipa de amotinados e desinteressados do Gana. E nem ao menos pudemos queixar-nos da sorte: basta constatar que, dos quatro golos marcados por Portugal, três foram literalmente oferecidos pelos adversários. Segundo depreendi, o futebol planeado pela nossa selecção resumia-se à esperança de que o Cristiano Ronaldo que resolvera o play-off contra a Suécia resolvesse também tudo o resto. Mas não só não havia plano-B, como nem sequer havia equipa para o plano-A.

A EMBAIXADA AO BRASIL

Podíamos ter feito fraca figura em campo, mas boa figura fora dele. Era nossa estrita obrigação, disputando um Mundial num país descoberto por nós, onde se fala a nossa língua e onde, para mais, dispusemos do apoio permanente dos brasileiros. Mas a selecção portuguesa passou pelo Brasil numa postura de vedetas inacessíveis, fechados numa fortaleza onde os únicos que entraram de fora foram dois cabeleireiros. Outras selecções treinaram na praia com o povo a vê-los, visitaram favelas, confraternizaram com os índios e populações locais. A nossa, não: nem uma visita a um centro português, a uma escola, a uma instituição qualquer. Nem um minuto de paragem para falar com as pessoas, nenhuma declaração, fosse de dirigentes, treinador ou jogadores, que, de alguma maneira agradecesse ao Brasil o Mundial e o apoio dado, ou até revelando ao menos que sabiam em que pais estavam - coisa que não tenho como certa.

0 FUTURO

Paulo Bento já revelou não estar disponível para a renovação radical que se impõe fazer na Selecção — não apenas nos nomes, mas no seu próprio funcionamento. Para ele, tudo terá que ser muito lentamente e com o critério da «gratidão» a sobrepor-se a tudo o resto. Ou seja. é mais importante não melindrar os seus, do que renovar a Selecção. Aliás, afastou desde logo a ideia de começar por renovar o seu próprio cargo. Assim sendo, pelo menos, a Federação sabe com o que conta. E nós também. Afinal, foi tudo a feijões.
MIGUEL SOUSA TAVARES, in abola
Li aqui

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