José Manuel Fernandes, in Público 2012-04-13
O nosso país vive na desconfiança perpétua, e isso afoga-nos em normas,
regulamentos e burocracia
A história, em si, não vale nada de especial. Vale apenas pelo que revela. Eu conto, pois passou-se comigo.
Na semana da Páscoa, atormentado com uma dor num joelho, fui até ao centro de saúde da minha área. Daí fui reenviado para uma urgência hospitalar onde me radiografaram e concluíram que o meu problema só poderia ser correctamente diagnosticado realizando uma ressonância magnética. O caso não tinha, porém, a urgência para uma intervenção imediata, pelo que, ao devolverem-me ao centro de saúde, me perguntaram se tinha algum seguro de saúde. Face à minha resposta afirmativa, veio o conselho: era melhor ir a um certo hospital privado, já que tudo seria mais rápido (soube depois que há listas de espera para as ressonâncias magnéticas).
Dirigi-me assim, como meu cartão do seguro, ao hospital recomendado. Comigo levava o papel do centro de saúde que me enviara para a urgência e provas das radiografias que fizera na urgência, mais uma breve nota do médico que me viu com o diagnóstico e a recomendação para realizar o tal exame especial. Foi então que esbarrei num muro: nenhum daqueles papéis, apesar de ninguém duvidar da sua autenticidade, tinha qualquer vinheta de um médico. Logo, o seguro não aceitaria pagar a ressonância magnética. Para a fazer, eu teria de voltar atrás e ir buscar um pedido formal de exame acompanhado por uma inevitável vinheta.
Expliquei o absurdo do pedido a uma funcionária do hospital e um funcionário da seguradora. Primeiro, iríamos todos perder tempo - eu, o médico a quem só se pediria uma formalidade e o próprio hospital, pois perderia a minha marcação para aquele dia. Depois, iríamos todos gastar mais dinheiro - eu teria de pagar uma consulta inútil e, depois, iria pedir o reembolso à companhia de seguros. O funcionário não desarmou. Melhor: desarmou-me a mim: "Quer que eu concorde consigo ou quer que eu lhe explique as normas?" Percebi que não valia a pena protestar mais.
Este pequeno episódio mostra bem o país que somos. Um país onde só as vinhetas, os carimbos e os selos brancos parecem ter valor. Um país onde, por todo o lado - no Estado, mas também nas empresas privadas -, o que conta são "as normas", não a substância dos problemas. Um país que prefere que os seus trabalhadores sejam autómatos a verificar assinaturas, regulamentos e infinitas burocracias em vez de lhes delegar um mínimo de autonomia e capacidade de decisão.
O ponto aqui é exactamente esse: não conheço, nem quero conhecer, o racional que levou a companhia do seguros a só confiar em vinhetas rubricadas, mas adivinho que devia temer abusos. Ou seja, partiu de um princípio de falta confiança nos seus clientes e nos prestadores de saúde. É um mau princípio: apesar de tudo, a maior parte das pessoas não são desonestas, e as que são realmente desonestas não desistem perante o obstáculo de uma simples vinheta. Até admito que pudesse existir como princípio geral, mas estou certo de que tudo funcionaria melhor se a companhia desse aos seus funcionários a margem de manobra mínima para eles se responsabilizarem por aceitarem ou rejeitarem situações como a minha. Mas não, o nosso modo de funcionar nunca passa por delegar responsabilidades, antes por criar normas e regulamentos. No nosso sistema nunca cabe o bom senso, antes se vê em cada cidadão um vilão.
O custo económico desta forma de pensar e funcionar é gigantesco. O meu microexemplo, até no seu absurdo, é, repito, quase irrelevante, mas como tudo funciona da mesma forma, como há regulamentos para tudo e para nada, como há cada vez mais leis e mais regras, muitas delas inaplicáveis, como por todo o lado se exigem burocratices infames (capazes de tornar num inferno tanto a vida de um funcionário das Finanças como a de uma professora do ensino público), esta doença que infecta todo o corpo social traduz-se em menor produtividade e numa endémica ineficiência.
Pior: trata-se de uma doença de que nem a troika nos salvará.
Na semana da Páscoa, atormentado com uma dor num joelho, fui até ao centro de saúde da minha área. Daí fui reenviado para uma urgência hospitalar onde me radiografaram e concluíram que o meu problema só poderia ser correctamente diagnosticado realizando uma ressonância magnética. O caso não tinha, porém, a urgência para uma intervenção imediata, pelo que, ao devolverem-me ao centro de saúde, me perguntaram se tinha algum seguro de saúde. Face à minha resposta afirmativa, veio o conselho: era melhor ir a um certo hospital privado, já que tudo seria mais rápido (soube depois que há listas de espera para as ressonâncias magnéticas).
Dirigi-me assim, como meu cartão do seguro, ao hospital recomendado. Comigo levava o papel do centro de saúde que me enviara para a urgência e provas das radiografias que fizera na urgência, mais uma breve nota do médico que me viu com o diagnóstico e a recomendação para realizar o tal exame especial. Foi então que esbarrei num muro: nenhum daqueles papéis, apesar de ninguém duvidar da sua autenticidade, tinha qualquer vinheta de um médico. Logo, o seguro não aceitaria pagar a ressonância magnética. Para a fazer, eu teria de voltar atrás e ir buscar um pedido formal de exame acompanhado por uma inevitável vinheta.
Expliquei o absurdo do pedido a uma funcionária do hospital e um funcionário da seguradora. Primeiro, iríamos todos perder tempo - eu, o médico a quem só se pediria uma formalidade e o próprio hospital, pois perderia a minha marcação para aquele dia. Depois, iríamos todos gastar mais dinheiro - eu teria de pagar uma consulta inútil e, depois, iria pedir o reembolso à companhia de seguros. O funcionário não desarmou. Melhor: desarmou-me a mim: "Quer que eu concorde consigo ou quer que eu lhe explique as normas?" Percebi que não valia a pena protestar mais.
Este pequeno episódio mostra bem o país que somos. Um país onde só as vinhetas, os carimbos e os selos brancos parecem ter valor. Um país onde, por todo o lado - no Estado, mas também nas empresas privadas -, o que conta são "as normas", não a substância dos problemas. Um país que prefere que os seus trabalhadores sejam autómatos a verificar assinaturas, regulamentos e infinitas burocracias em vez de lhes delegar um mínimo de autonomia e capacidade de decisão.
O ponto aqui é exactamente esse: não conheço, nem quero conhecer, o racional que levou a companhia do seguros a só confiar em vinhetas rubricadas, mas adivinho que devia temer abusos. Ou seja, partiu de um princípio de falta confiança nos seus clientes e nos prestadores de saúde. É um mau princípio: apesar de tudo, a maior parte das pessoas não são desonestas, e as que são realmente desonestas não desistem perante o obstáculo de uma simples vinheta. Até admito que pudesse existir como princípio geral, mas estou certo de que tudo funcionaria melhor se a companhia desse aos seus funcionários a margem de manobra mínima para eles se responsabilizarem por aceitarem ou rejeitarem situações como a minha. Mas não, o nosso modo de funcionar nunca passa por delegar responsabilidades, antes por criar normas e regulamentos. No nosso sistema nunca cabe o bom senso, antes se vê em cada cidadão um vilão.
O custo económico desta forma de pensar e funcionar é gigantesco. O meu microexemplo, até no seu absurdo, é, repito, quase irrelevante, mas como tudo funciona da mesma forma, como há regulamentos para tudo e para nada, como há cada vez mais leis e mais regras, muitas delas inaplicáveis, como por todo o lado se exigem burocratices infames (capazes de tornar num inferno tanto a vida de um funcionário das Finanças como a de uma professora do ensino público), esta doença que infecta todo o corpo social traduz-se em menor produtividade e numa endémica ineficiência.
Pior: trata-se de uma doença de que nem a troika nos salvará.
Fonte: aqui
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