segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A Igreja e os sinais dos tempos

Começou esta semana a ser distribuído em várias línguas o livro-entrevista Luz do Mundo. O Papa, a Igreja e os sinais dos tempos, constituído por um conjunto de conversas entre Bento XVI e o jornalista alemão Peter Seewald.
Os média fixaram-se no preservativo. Mas o livro é muito mais abrangente. O seu fio condutor é: "o cristianismo dá alegria, alarga os horizontes. Em última análise, uma existência vivida sempre e só 'contra' seria insuportável". Mas uma coisa é o cristianismo e outra a Igreja. Por isso, o Papa confessa que foi "um choque enorme" a constatação da pedofilia do clero, sobretudo pelas suas dimensões. Admite que o caso terrível de Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, "foi encoberto" por responsáveis do Vaticano. Lamenta não ter tido informação sobre o bispo negacionista R. Williamson, a quem levantou a excomunhão.
No quadro da actual crise mundial, "é absolutamente inevitável um exame de consciência global". O progresso pode ser também destruidor; por isso, "devemos reflectir sobre critérios a adoptar para que seja verdadeiramente progresso". A droga "destrói os jovens, destrói as famílias, leva à violência e ameaça o futuro de nações inteiras". É necessário "olhar para as coisas últimas", mesmo se os novíssimos são "pão duro para os pessoas de hoje". É urgente continuar o diálogo com os judeus e os muçulmanos. Põe a hipótese de renunciar ao cargo, se não estiver em "condições físicas, psíquicas e mentais" para continuar.
E lá vem também a sexualidade, sublinhando a necessidade de uma educação para a sua humanização. De facto, não vale tudo. Mas o pronunciamento papal sobre a legitimidade do uso do preservativo em "casos pontuais, justificados", foi histórico, aliás, saudado como positivo por muitos Governos, pela directora da OMS e pelo secretário-geral da ONU. Afinal, Bento XVI apenas pôs em prática o Evangelho: "O Homem não é para o Sábado, mas o Sábado para o Homem."
Precisamente por isso, penso que será necessário perguntar se a Igreja não terá de rever outras questões. Se, por exemplo, a paternidade e a maternidade responsáveis não implicam a abertura aos anticonceptivos "artificiais", superando uma concepção biologista da natureza. Se não se deverá colocar termo à lei do celibato, pois não é bom impor como lei o que Jesus entregou à liberdade. Se não se deverá tirar as devidas consequências da afirmação papal: os homossexuais "merecem respeito" e "não devem ser rejeitados por causa disso". Se não é necessário repensar a proibição da comunhão aos divorciados que voltaram a casar. Se as mulheres, a partir do comportamento de Jesus, que levou à declaração paulina: "já não há judeu nem grego, nem senhor nem escravo, nem homem nem mulher, pois todos são um só em Cristo", não devem ser tratadas na Igreja sem discriminação, por exemplo, no acesso à presidência na celebração da Eucaristia.
Mais tarde ou mais cedo - é preferível mais cedo -, a Igreja deverá ter um pronunciamento lúcido e claro sobre estas matérias. Para não dar a impressão de que ela lá vai indo, mas aos empurrões, e quando, entretanto, muitos a foram abandonando.
Não foi por acaso que a revelação sobre o uso do preservativo apareceu no mesmo dia em que o Papa impôs o barrete a mais 24 cardeais. No dia seguinte, lembrou-lhes que devem estar sempre junto de Cristo na cruz. Mas cá está! No meio de todo aquele aparato do Vaticano, há aqui uma contradição entre a pompa e a cruz. Há aquele texto do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, que diz mais ou menos assim: vai Sua Excelência Reverendíssima o Bispo de Copenhaga, revestido de paramentos com filamentos de ouro e um báculo e uma mitra debruados de pedras preciosas, com todo o seu séquito em esplendor, senta-se num cadeirão de prata e dá início à sua homilia sobre a pobreza. E ninguém se ri !...
A alguém que se sentisse irritado com estas perguntas lembro um texto de Joseph Ratzinger, no qual escreveu que, se hoje se critica menos a Igreja do que na Idade Média, não é porque se tem mais amor à Igreja, mas a si e à carreira.
ANSELMO BORGES, in DN

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