segunda-feira, 12 de agosto de 2024

O esvaziamento do Sínodo

 
Muito provavelmente, o Sínodo vai ser mais uma oportunidade perdida pela Igreja Católica. A atual decisão de afastar do Sínodo as questões candentes da moral sexual e dos ministérios ordenados das mulheres poderá representar o esvaziamento do conteúdo sinodal. Mais uma vez, as mulheres, fustigadas por centenas de anos de ocultamento e subserviência, serão sacrificadas no altar de uma doutrina cautelosamente construída sobre preconceitos, mas ideologicamente mascarada de lei divina.

Se há coisa que me perturba é ouvir os membros da hierarquia eclesial declararem como vontade de Deus doutrinas mais do que dúbias. Em vez disso, a Igreja hierárquica nada perderia (e muito ganharia) em ser bem mais humilde quando se trata de declarações fechadas e doutrinas contundentes que colocam Deus num espartilho a que nunca se acomodará. Deus é bem mais do que as nossas limitadas perspetivas. E ainda que o queiramos açaimar, Ele será sempre o Outro, inteiramente livre para dinamitar os nossos míopes pontos de vista. É por isso que a ideia de uma lista de dogmas irreformável é, em si mesma, um ato idolátrico. Com a afirmação dogmática daquilo que consideramos ser a vontade de Deus, afirmamos provir dele o que corresponde apenas aos nossos balbucios imperfeitos, passageiros e, muitas vezes, insensatos.

Regressemos à questão das mulheres. Durante séculos foram afastadas dos lugares de chefia, sem qualquer justificação racionalmente plausível. Foi a cultura de dominação dos machos a introduzir-se insidiosamente nas estruturas da Igreja. E aquilo que havia sido o cristianismo inicial foi rapidamente substituído pela lógica da cultura dominante, eminentemente patriarcal.

Concílio Vaticano Segundo não veio trazer alterações significativas a este respeito. E percebe-se porquê: as questões a reformar eram tantas que não era possível resolver todas elas em simultâneo, nem havia abertura para chegar tão longe. Além disso, a Cúria era dominada por um grupo reacionário que tudo fez para diminuir o alcance dos documentos conciliares. Encerrado o Concílio, essa mesma trupe de “funcionários de Deus” manteve o domínio sobre o aparelho eclesial. E assim inicia, logo que pode, uma reinterpretação tradicionalista do Concílio, apagando a sua vertente claramente reformista. A eleição do papa João Paulo II é o corolário e a consolidação desta política de apagamento conciliar e das suas linhas de força. As mulheres, apesar dos elogios que lhe são tecidos, continuam a ser relegadas para o campo subalterno que sempre lhes foi atribuído e para as funções secundárias que sempre exerceram.

A eleição de Francisco trouxe uma nova esperança à continuidade da reforma, sobretudo à questão do papel das mulheres, à “desmasculinização” da Igreja e, consequentemente, à sua “desclericalização”, como tem referido insistentemente o Papa. Há quem não entenda qual o alcance da palavra clericalismo. Na verdade, quem viveu a vida sob o manto sombrio da floresta raramente consegue equacionar a possibilidade de um mundo com acesso direto à beleza luminosa dos céus. Toda a Igreja está orientada e se comporta como uma comunidade clericalizada. Um Papa todo-poderoso comanda inequivocamente a Igreja. Um bispo comanda inequivocamente a comunidade diocesana. Um padre comanda inequivocamente a comunidade paroquial. Todos homens, exercem a título individual um poder “divino”. É isto o clericalismo!

Como combatê-lo? Obviamente, dando poder de decisão aos leigos, retirando o poder absoluto das mãos de um indivíduo apenas e repartindo-o por toda a comunidade de pessoas que se reconhecem como irmãos e concedendo às mulheres o acesso direto e incontestável aos mesmos papéis que os homens representam. Só assim teremos realmente uma comunidade de irmãos onde todos serão efetivamente iguais: “Quanto a vós, não vos deixeis tratar por ‘mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis ‘Pai’, porque um só é o vosso ‘Pai’: aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por ‘doutores’, porque um só é o vosso ‘Doutor’: Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado” (Mt 23, 8-12).

Sínodo foi uma nova brisa soprando contra o sufoco enfadonho e triste do passado. No entanto, receio que nenhum resultado realmente significativo saia da sua segunda e derradeira sessão. Fiquei deveras apreensivo quando verifiquei que as questões candentes, sobretudo as que se referem à questão feminina, tinham sido estrategicamente afastadas de qualquer discussão sinodal. A razão é deveras incompreensível.

Já é o segundo grupo de trabalho que reúne para preparar um documento de caráter histórico-teológico sobre o diaconado feminino. O primeiro, segundo se diz, foi inconclusivo. Não se vê por que razão o segundo tirará melhores conclusões que o primeiro. Por motivos ideológicos, haverá sempre quem considere ser vontade de Deus a discriminação a que as mulheres têm sido sistematicamente sujeitas (que Deus é este em que acreditamos?). Jamais haverá consenso sobre o assunto. Por isso, esperarmos um consenso que nunca vai ocorrer conduz-nos a um beco sem saída e à manutenção de uma injustiça milenar.

Se observarmos como as mentalidades se vão modificando, verificamos que o processo passa em boa medida por alterações estruturais com implicações nos comportamentos e na formação das mentalidades. Estar à espera que as mentalidades mudem por si mesmas, sem nenhum empurrão institucional, seja ele interno ou externo à Igreja, é mais ou menos o mesmo que esperar o Reino de Deus sem nada fazer para que ele se torne efetivamente presente na vida de toda a gente. Os estudos estão feitos, os problemas estão detetados, urge passar à ação. Qual seria a melhor circunstância para tomar decisões concretas sobre estes assuntos senão a que nos oferece um Sínodo? Em vez disso, as cúpulas eclesiais, ao arrepio daquilo que pregam (uma Igreja efetivamente sinodal), recusam ao Sínodo a possibilidade de tomar posição sobre estas questões, entregando-as ao organismo que tem provocado, ao longo dos séculos, maiores engulhos à vida da Igreja, o Dicastério para a Doutrina da Fé. Tudo vai, portanto, permanecer em banho-maria por tempo indeterminado, sem qualquer atenção ao grito de justiça que os confins da história não param de nos fazer chegar.

Esta estratégia não é nova. Também no Concílio se procedeu ao mesmo expediente. O objetivo é sempre o mesmo: retirar o poder de decisão efetiva ao conjunto da Igreja para o entregar, inteiro e inapelável, ao “Papa”, ou melhor, a um conjunto reservado de tradicionalistas que dominam o aparelho eclesial. Relembremos o que sucedeu e os estragos que provocou a avaliação moral do uso de anticoncecionais. Arredada da discussão conciliar, foi entregue a uma comissão que surpreendeu pela rutura com a perspetiva tradicionalista. Apesar disso, o “Papa”, ou melhor, esse conjunto seleto de dignitários da Cúria romana que “se sentaram na cátedra de Moisés” (Mt 23,2), toma a decisão exatamente contrária, iniciando aí um novo processo de rutura com o tempo em que vivemos e afundando a doutrina católica numa moral da negação e da proibição.

Fico triste que os sinais sejam pouco animadores. Infelizmente, cada vez tenho menos esperança de que a realidade da vida eclesial mude significativamente em tempo útil. Não tenho obviamente qualquer dúvida de que vai mudar. As mulheres hão de ser ordenadas, os padres hão de poder casar-se, se assim o entenderem, os membros do grupo LGBT hão de ser resgatados à exclusão moral a que foram e são sujeitos, os anticoncecionais hão de ser resgatados à proibição vergonhosa em que foram enclausurados, etc. Mas temo que o tempo em que tais mudanças venham a ocorrer as tornem efetivamente pouco significativas pelo facto de a Igreja se ter tornado, entretanto, um pequeno grupo sem relevância social. É o que acontece amiúde quando nos recusamos obstinadamente a ouvir o Espírito que nos fala através do tempo em que a vida nos foi concedida, por meio dos movimentos sociais, culturais, políticos e filosóficos que nela se configuram. 

Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.

Fonte do texto: aqui

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