terça-feira, 12 de julho de 2022

Pregar noutra freguesia

 
Não é fácil ser padre e, talvez ainda menos, ser pároco.

Não é fácil constituir uma família, gerar e educar os filhos.
A vida não é fácil para quem a quiser dar e viver.
Sem fazer do padre um «desgraçado que tem uma cruz mais pesada que a dos outros» (não é verdade!), nem um «herói solitário», desejaria partilhar convosco o que me tem chegado ao coração por estes dias, à medida que vejo, por aqui, imagens de ordenações sacerdotais e de aniversários das mesmas. Essa alegria não esconde o sofrimento por eufemísticas "pausas sabáticas".
Sem preocupação pela ordenação dos sinais, aqui ficam algumas dificuldades, que devem ser tomadas como desafios, para a nossa vida sacerdotal:
1. o desencontro entre o que nos pedem os fiéis e o que gostaríamos de lhes oferecer;
2. a consciência de que, tantas vezes, estamos a falar uma «língua estrangeira» com os nossos interlocutores;
3. os pedidos e exigências de sacramentos sem quaisquer disposições para a conversão e para iniciar ou continuar ou retomar algum caminho de seguimento do Senhor;
4. a dispersão de iniciativas e solicitações e ocupações, que não nos deviam pertencer em primeiro lugar;
5. o manto de suspeita "dos abusos" que se abate sobre nós como uma nuvem densa e escura, que nos entristece e desanima;
6. a falta de sentido comunitário e de compromisso cristão, de quem procura uma religião «à medida do seu eu» e faz do padre um agente de serviços religiosos;
7. o paganismo religioso e o mundanismo espiritual com que é tão fácil perverter-nos e fazer-nos cair na tentação de uma vida clerical aburguesada e de poder sobre os mais fracos;
8. a dispersão e intermitência da presença e participação dos fiéis nas ações e celebrações que, pouco a pouco, desfiguram o rosto da comunidade cristã;
9. a euforia por uma «saída da Igreja», por viagens e festivais, mais do que a luta por uma «Igreja missionária e em saída»;
10. o confinamento ou domesticação da fé, relegada para casa, sem relevância comunitária;
11. o ritmo sazonal e de «fim de semana» a ameaçar o ritmo dominical do encontro com o Senhor;
12. os novos cultos para o cultivo individualista do bem-estar...a sobrepor-se às práticas tradicionais da fé católica;
13. a amargura de quem se sente frustrado por chegar ao fim e tão pouco ter alcançado...
... e mais poderíamos dizer... e que nem as fotos promocionais iludem...
Com tudo isto, alguém confessava, «olhe, passada a pandemia, eu parece que estou a pregar noutra freguesia».
Outro ia dizendo: «Já não reconheço a minha paróquia. Até tenho vergonha de mudar, como desejava, ao ver o estado da paróquia: não consigo reunir as pessoas e os grupos (ora estão uns, ora nenhuns, ora os que não estiveram), ora celebro com a Igreja meia, ora vazia, raramente cheia. Chamo, procuro, peço, e não encontro, não sei por onde andam. Anda tudo no ar, que mais hei de fazer»?
E por aí adiante...
De facto, temos de reconhecer que as nossas paróquias não são nem serão mais as mesmas, depois desta aceleração pandémica.
As práticas pastorais, as estratégias e, sobretudo, as atitudes terão realmente de ser outras, sem complexos de maioria ou de cristandade.
Teremos de ser menos, minoria criativa, de fermentar mais, de sair mais, de dizer a quem pede e exige «se quer, faça alguma coisa pelo que quer».
Refazer o tecido da comunidade, desatar os nós, unir os fios, é obra de arte pastoral.
Sim, a pastoral é uma arte. Não é um tratado de gestão.
Penso nos párocos, nos mais novos que batem de frente com uma realidade que «não dominam» como pensavam; nos mais velhos que se defrontam com a paróquia que não parece nem é mais a mesma; nos de meia-idade que ainda se perguntam se não é melhor mudar de vida...
Tudo isto precisa de ser pensado, meditado, rezado.
A crise é oportunidade de crescimento, de acrisolamento, de juízo, de clarificação... e não se resolve a tapar buracos, porque a ilusão de sucesso vai-se e esvai-se como a água por entre os dedos.
É preciso mais tempo para pensar e rezar, do que para fazer; é preciso mais tempo para alcançar sabedoria e serenidade, para discernir, de modo partilhado, com realismo e ousadia, com calma e criatividade, o que há a fazer, a deixar de fazer ou a fazer de outro modo.
São desafios enormes à nossa prudência e paciência, ao discernimento, até alcançarmos a sabedoria de pedir aos outros e de fazermos apenas «o bem possível» sem ilusões de sucesso e com a certeza de que, em cada pessoa, por muito diluída que nos pareça a luz da alma cristã, reflete-se ainda e sempre a imagem de Deus e, que, por isso mesmo, há sempre «uma ponta por onde se lhe pegue», mesmo que não seja fácil encontrá-la.
Precisamos de Pastores ouvidores, com grande paciência, sem pressa, capazes de fazer um discernimento realista com quem está no terreno, Pastores que acompanhem, que estimulem, que animem, que tenham a coragem de pôr limites ao número de celebrações, de serviços, de trabalhos, sob pena de estourarmos os nossos melhores tesouros numa arena impiedosa.
Já não há mais paróquias «boas» que são como um «lameirinho». Há sim, no campo e na cidade, nas aldeias e vilas, muito «mato», muito «mato» por desbravar, para deixar respirar os frutos da seara, que temos a missão de colher.
E começar a fazê-lo com a certeza de que agora é altura de, mesmo sem mudar de lugar, ir pregar para outra freguesia...
Amaro Gonçalo, aqui

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