Um testemunho no dia do padroeiro dos Párocos
Há muito quem pregue sobre as dificuldades da vida sacerdotal, fazendo crer que a missão é quase sobre-humana e que o padre é um “desgraçado”, um solitário e celibatário, a carregar uma cruz mais pesada que a dos demais.
Não tenho nada essa ideia nem essa experiência, conhecendo bem as exigências da vida familiar, social e profissional dos meus irmãos e irmãs de sangue. E bastaria olhar para estes como termo de comparação, para desistir de qualquer “queixume” sobre as agruras e amarguras da vida de um padre. “Casassem-no”, diz uma certa anedota a respeito de uma pregação que exaltava tanto os sofrimentos de Jesus, que só lhe faltava mesmo conhecer a Cruz do amor matrimonial. Uma historieta a mostrar que o caminho do matrimónio, tão menorizado em relação ao do sacerdócio ministerial, não é de menor exigência, bem pelo contrário.
Aliás, essa narrativa, que pretende exaltar tanto o Padre, imolado no altar do seu sacrifício diário, não ajuda nada na promoção vocacional do ministério presbiteral. O que é difícil mesmo não é ser padre; é ser fiel ao Evangelho, viver como cristão, corresponder à vontade de Deus, crescer na santidade, vencer-se a si mesmo e ao pecado, amar os outros, tais como são, até ao fim. E isso é um programa comum a todos os fiéis batizados.
E, mesmo aí, vem em minha ajuda a minha querida mãe que criou 12 filhos e sempre se refere ao seu passado de trabalhos e sacrifícios com a expressão evangélica “o meu jugo foi suave e a minha carga foi leve”. Ela viveu com paixão o seu casamento, a sua maternidade, a sua fé, a sua vida. E, por isso, as coisas não lhe “pesaram” tanto como isso, mesmo quando nos parecia precisamente o contrário.
Aqui está o segredo de uma qualquer vida dada e dedicada: amar, amar as pessoas, amar as suas contradições, as suas exigências, as suas manias, as suas imperfeições, as suas injustiças. Amar. Amar as pessoas, amar o Povo, tal qual ele é. Recordava o reitor do Seminário, hoje Dom António Taipa: “Que mal diz de si mesmo um padre que fala mal do seu povo”! Não que o povo não cometa erros, não faça sofrer o seu pároco, não nos peça o que esperávamos, não corresponda ao que desejávamos…Certamente, que tudo isso faz parte do caminho que fazemos juntos, fiéis batizados e pároco.
Mas é preciso também colocar-se do lado do Povo e perceber quão sábio e santo ele é, aturando-nos, suportando as nossas manias, os nossos maus humores, as nossas arrelias, mas mesmo assim “amando-nos”, servindo de graça a sua comunidade. Como não ficar espantado haver ainda tantos leigos e leigas, com tempo disponível e gratuito, para além da sua missão no mundo, para a missão no interior da sua comunidade cristã. Depois, na vida pastoral, com os seus altos e baixos, há sempre um momento “redentor”, em que o amor prevalece, sobrevém, sai vencedor, manifesta-se superior à ofensa, à intriga, ao desentendimento.
A sabia Eulália Macedo, a Lalinha, a minha amiga poetisa amarantina, dizia-me muitas vezes, no início do meu ministério paroquial: «o seu ofício de pastor não é “pôr-nos na linha”; é amar-nos». Na verdade, pude compreender como as ovelhas obedecem ao cão, mas só seguem o Pastor! E aprendi com ela que antes de qualquer coisa, era preciso amar aqueles a quem servíamos, a quem curávamos, corrigíamos, ensinávamos… E que, antes de tudo isso, era preciso aprender a escutá-los, a conhecer as suas histórias de vida, histórias de muitas ou de poucas palavras, para decifrar a escrita de Deus, na tábua de carne dos seus corações, tantas vezes trespassados.
Quantos desentendimentos, quantas picardias, quantos desencontros, teríamos evitado, na nossa vida paroquial, se primeiro ouvíssemos, com paciência e tempo, as histórias de vida, de quem nos pede um documento, de quem reclama um sacramento, de quem – dizemos nós – nem sabe bem o que nos está a pedir. O discernimento dos muitos “casos” na vida pastoral não cairia na casuística fria, se aprendêssemos a descalçar as botas de ferro, perante a “terra sagrada” do outro, desse outro que não fala o nosso eclesialês, que não sabe sequer dar o nome certo ao que nos está a pedir. Mas traz no seu coração uma centelha de fé, uma secreta raiz implantada no campo da Igreja, uma esperança oculta de salvação, que não merece a nossa desconsideração, o nosso desprezo e, pior ainda, o cinismo da nossa superioridade clerical, que esmaga e apouca os fiéis. Todos já teremos resvalado por aí. E como me arrependo disso. Tenho de voltar a ouvir a minha amiga Lalinha: “Padre Gonçalo, seja mais pronto a consolar do que a corrigir”.
Ser pároco hoje, perante a multiplicidade de situações – não há casos iguais – exige uma grande disponibilidade para a escuta das pessoas, para a leitura dos sinais vitais da presença oculta de Deus na vida das pessoas e comunidades. O vício administrativo, que impõe regras, como crivo, impede-nos de olhar cada pessoa, no seu todo, nas suas circunstâncias. Fazemo-lo, tantas vezes, na busca de uma aparente justiça, de sermos iguais para todos. Eu diria, feliz do Padre que não trata de modo igual pessoas diferentes. Mesmo, se visto do lado de fora, pareça ser injusto, quando apenas se tratou de uma discriminação positiva, de uma atenção e de uma resposta personalizada. O rebanho não pode ser arrebanhado.
Sou pároco há 29 anos. É verdade que tive a sorte de nunca me sentir espartilhado por muitas paróquias. Mas, mesmo com duas, ao iniciar, olhava para elas, como porção da minha herança, povo de Deus, sem linhas de fronteira territoriais. Porque o nosso coração de pastor não pode ser cartografado com fronteiras.
Dou graças a Deus, porque ser pároco é entrar no coração de cada pessoa e no seu álbum familiar, na história de vida de cada pessoa e até de uma freguesia; é poder ser pastor de pobres ricos e de ricos pobres, de pessoas de todas as idades e condições, simpatizantes, crentes, religiosas, cristãs e católicas, indiferentes ou buscadores. Ser pároco é viver a graça de conjugar o verbo amar, no mesmo dia, com o riso e o pranto, o nascimento e a morte, o amor e a dor, a escuta e a Palavra, a oração e ação.
Digo-vos que não trocaria nenhuma outra forma de ser padre por esta de ser pároco. Certamente, a figura do cura da aldeia dará lugar à figura do padre, como o «tipo da comunhão»; em que ele deixa de ser o faz-tudo, para ser o que faz fazer. Muitos párocos terão hoje territórios e número de fiéis, de dimensão quase diocesana, o que exigirá mais tempo para rezar, escutar, discernir juntos os caminhos da missão, ponderar prioridades, fazer o essencial sem absorver o que deve ser feito pelos outros. É todo um caminho de aprendizagem missionária, de sofrimento, de avanços e recuos, de tentativas falhadas ou bem-sucedidas. Não importa. Tudo se perdoa, quando se ama o povo. Porque o Padre – e já agora o Bispo – só tem de ser especializado numa arte: a arte do pastoreio, à imagem de Cristo, o Pastor belo, que ama, conhece e dá a vida pelas ovelhas, sem a pretensão de ser o seu dono, antes o seu servidor. O retorno da graça, para um pastor que ama – posso garantir - é bem mais do que cem por um.
Um abraço fraterno a todos os irmãos padres, especialmente aos que são párocos, neste dia do nosso padroeiro, São João Maria Vianney, o Santo Cura d’Ars.
P. Amaro Gonçalo, Facebook
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