domingo, 14 de setembro de 2014

NÃO É POSSÍVEL VIVER SEM CRUZ, NÃO É IMPOSSÍVEL VIVER FELIZ COM A CRUZ (festa da Exaltação da Santa Cruz)

 
A. A festa não é excepção, mas a regra

1. Está a terminar a época das festas e, no entanto, continuamos em festa. Não é a festa dos foguetes e das farras, mas a festa do sorriso, a festa do abraço, a festa da amizade, a festa da partilha, a festa do encontro: do encontro com Cristo e do encontro entre todos em Cristo.
Um cristão nunca deixa de estar em festa. Ao contrário do que é usual pensar-se, a festa, para o cristão, não é excepção (embora seja sempre excepcional); é a regra. A festa está sempre a acontecer. É uma festa simples, é uma festa bela. As festas mais simples são sempre as mais belas.
Para muitos, a festa é sobretudo interrupção e excesso. A festa será o que interrompe o ritmo da vida e o que rompe a cadência do quotidiano. Porque a vida costuma ser triste, a festa costuma ser alegre. Porque o quotidiano costuma ser feito de escassez, a festa costuma ser feita de excessos. Curiosamente, para o cristão, a festa também é tecida de excessos. Não de excessos de comida ou de bebida, de excessos de gastos ou de consumo. A festa cristã é tecida de excessos, sim, mas de excessos de doação, de excessos de simplicidade, de excessos de amor.

2. Em Cristo, Deus mostrou-Se excessivo, sumamente excessivo. Como refere o Evangelho deste dia, «Deus amou de tal modo o mundo que entregou o Seu Filho único, para que todo o homem que acredita n’Ele não se perca, mas tenha a vida eterna»(Jo 3, 16). Ninguém é capaz de amar assim. Diria que é preciso ser Deus para amar assim — tão excessivamente, tão desmedidamente — o homem.
Deus não tem amor, o que pressuporia ter igualmente algo que não amor. O homem tem amor, mas também desamor, mas também não-amor, mas também egoísmo, mas também ódio. Deus não. Deus não tem amor. Como proclama enfaticamente S. João, «Deus é amor»(1 Jo 4, 8.16). Ou, como insistia François Varillon, «Deus não é senão amor».
B. A festa das festas
3. A festa cristã é a celebração deste excesso, deste excesso de amor. E tal celebração ocorre não apenas uma vez por ano, mas todos os domingos e até todos os dias. Pois sempre que se celebra a Eucaristia, estamos a tornar sacramentalmente presente este excesso de dom, este excesso de amor. Por conseguinte, não há festa só nos dias de festa. Para o cristão, todos os dias são de festa. A festa está no tempo para estar sobretudo na vida que se vive no tempo.
O ponto alto de uma festa cristã não é a procissão, é a Eucaristia. A Eucaristia é a essência. A procissão não é a essência, é uma consequência. A procissão tanto pode ser realizada como preparação para a Eucaristia como pode ser promovida como um seguimento da Eucaristia. O significado é o mesmo: do tempo peregrinamos até ao templo, do templo peregrinamos até ao tempo.
A Eucaristia torna presente o mistério pascal como, aliás, a assembleia reconhece após a consagração: «Anunciamos, Senhor, a Vossa morte, proclamamos a Vossa Ressurreição; vinde, Senhor Jesus». É um mistério que celebramos no templo para testemunhar na nossa peregrinação pelo tempo. De certa forma, a Missa não tem fim. Após a celebração sacramental, tem início a celebração existencial da Eucaristia. Em suma, termina a Missa, começa a Missão.

4. A Eucaristia é, pois, uma festa, a festa das festas. Mas é bom não esquecer que se trata de uma festa que celebra um drama: o drama de uma morte, o drama da Cruz. Eis, porém, que um paradoxo nos visita e uma perplexidade nos assalta. Como é possível fazer festa à volta de um instrumento de dor e de um espaço de morte? Não haverá aqui alguma dose de masoquismo?
A Cruz, com efeito, não goza de boa reputação. Como lembra S. Paulo, os antigos consideravam «maldito» aquele que fosse morto no madeiro (cf. Gál 3, 13). Achava-se que os mortos na cruz nem depois da morte tinham descanso: andariam a vaguear pelo mundo à maneira de fantasmas. Daí que os romanos não crucificassem os seus cidadãos condenados. Só crucificavam os não-romanos. Compreende-se, assim, que Jesus e S. Pedro tenham sido crucificados e que S. Paulo não tenha sido crucificado, mas decapitado. É que Jesus e S. Pedro não tinham a cidadania romana e S. Paulo tinha.
C. Até a morte é vencida pelo amor
5. Muita gente mostrava dificuldade em aceitar que alguém divino pudesse ser morto e, muito pior, morto na Cruz. São bem conhecidas as alegações de Celso e as objecções de Clóvis, que depois viria a converter-se. S. Paulo escreve aos coríntios que a Cruz era vista como loucura («moria) (cf. 1 Cor 1, 18). Um pouco mais tarde, S. Justino vai mais longe e diz que a Cruz era apontada como sinal de demência («mania»). 
Como vemos, a tudo Se sujeitou Jesus. A tudo foi submetido Jesus. Por amor, Ele morreu e morreu nas condições mais humilhantes. Como refere o hino da Carta de S. Paulo aos Filipenses, Jesus «humilhou-Se a Si mesmo, obedecendo até à morte, e morte de Cruz»(Fil 2, 8). E, de facto, não podia haver humilhação maior. Grande humilhação já é a condenação à morte. Suprema humilhação é a condenação à morte na Cruz.

6. Acontece que Jesus Cristo tudo transforma. Ele transforma a vida e transforma a própria morte. Com Ele, já nem sequer a morte é o fim. Como assinalou Hans Urs von Balthasar, Cristo inaugura «o fim sem fim». A morte de Cristo é uma morte morticida, uma morte que mata a própria morte. É neste sentido que o lugar onde Ele morre se torna lugar de afirmação suprema da vida.
Daí a pertinente pergunta de S. Paulo: «Ó morte, onde está a tua vitória?»(1Cor 15, 55). A morte é forte — cruelmente forte — mas, como já salientava o livro do Cântico dos Cânticos, «o amor é mais forte que a própria morte»(Ct 8, 6). Uma vida doada por amor tudo vence; até a morte é vencida. Como iremos ouvir no prefácio da Oração Eucarística, na Cruz está a salvação, pois «donde veio a morte daí ressurgiu a vida e aquele que venceu na árvore do paraíso foi vencido na árvore da Cruz».
Na Cruz, até a morte foi derrotada. Mas, para ser derrotada, teve de ser assumida. Enorme lição, esta. Não é fugindo dos problemas que se resolvem os problemas. Como já notava S. Gregório de Nazianzo, «o que não é assumido não é salvo». Na Cruz, Jesus assume a morte. Na Cruz, Jesus vence a morte.  Daí que a festa de hoje seja também conhecida como festa da «Cruz gloriosa» ou da «preciosa Cruz, portadora de Vida».

D. Adoramos o Cristo da Cruz e a Cruz de Cristo
7. A Cruz tem uma importância muito grande na vida de cada um de nós. Friedrich Schiller até chamou ao Cristianismo «a religião da Cruz». Um dia por ano, na Sexta-Feira Santa, adoramos a Cruz de Cristo. Em cada dia da nossa vida, somos convidados a adorar o Cristo da Cruz. A Exaltação da Santa Cruz acaba por ser a exaltação do Crucificado, d’Aquele que deu a vida por nós na Cruz.
A Cruz de Jesus Cristo terá sido encontrada a 3 de Maio de 326 por Sta. Helena, mãe do imperador Constantino, durante uma peregrinação a Jerusalém. Uma parte dessa Cruz encontra-se na Igreja de Santa Cruz de Jerusalém, em Roma. Daí que no ocidente se tenha difundido muito a festa que comemora a descoberta (em latim «inventio») da Santa Cruz a 3 de Maio. E, em muitas terras, ainda existem festas de Santa Cruz nessa data.
Entretanto, no preciso local da descoberta, foi construída a Basílica do Santo Sepulcro. Esta basílica foi dedicada em 335, com uma parte da Cruz em exposição. A 13 de Setembro ocorreu a dedicação e a Cruz foi colocada em exposição no dia 14. As peregrinações, como sabemos por exemplo por Etérea, começaram a atrair multidões de todo o lado. Por todo o mundo depressa se espalharam relíquias da Cruz e as comunidades cristãs gostavam de reproduzir a parte que possuíam do santo madeiro: o «santo lenho».
Esta festa passou a todo o oriente e também ao ocidente, tendo chegado a Roma no século VII. Após o Concílio Vaticano II, as festas de 3 de Maio e de 14 de Setembro foram unificadas numa única, precisamente naquela que ocorre neste dia.
E. A Cruz não ficou (apenas) em Jerusalém
8. Sabemos, pela história e por experiência, que a Cruz não está só em Jerusalém e em Roma. A Cruz mantém-se presente em toda a humanidade. A Cruz está por toda a parte não apenas como monumento nem tão-pouco como ornamento. A Cruz continua activa em tantas vidas crucificadas. A Cruz tem não só uma actualização sacramental, na Eucaristia, mas também uma actualização histórica e uma actualização vivencial, na existência de tantas pessoas.
Cristo continua a dar a vida em tantos que são condenados pela injustiça que grassa na terra e pela perseguição que persiste no mundo. Como esquecer a cruz dos que morrem à fome, dos que morrem sem tecto, dos que morrem sem assistência médica? E como teimar em ignorar a cruz dos que morrem por causa da fé e, concretamente, por causa de Cristo?
Há cristãos que estão a ser mortos só pelo facto de serem cristãos. Para nosso pesar — e, muitas vezes, com a nossa indiferença —, em apenas dois dias, 500 mil pessoas (a maioria cristãs) foram obrigadas a abandonar Mossul sem poderem levar nada e sem terem possibilidade de regressar. Muitas casas têm sido marcadas com a letra «nun», a primeira da palavra «Nazareno», o que significa que as alternativas são: abandonar a fé cristã, fugir ou ser morto!

9. O século XXI tem sido um século de mártires. Tantos que dão tanto em condições tão dificultadas. E tantos que dão tão pouco em condições, apesar de tudo, bem menos difíceis. É certo que, neste nosso ocidente, as condições para o testemunho da fé também não são propriamente fáceis. Mas, pelo menos, ainda sobra alguma liberdade. Estaremos dispostos a oferecê-la pelo Evangelho?
Não é possível viver sem cruz. Mas também não é impossível viver feliz com a Cruz. Como lembrava Karl Rahner, «quem escolhe, escolhe a Cruz». Não se pode seguir Jesus sem levar a Cruz com Jesus. Se procurarmos um Cristo sem Cruz, podemos ser surpreendidos com uma cruz sem Cristo. E, aí, o peso será tremendamente maior, totalmente insuportável. O povo diz — e diz muito bem — que a cruz partilhada é menos pesada. Quando aceitamos partilhar a Cruz de Cristo, sentimos que Ele já aceitou, primeiro, partilhar a nossa Cruz.
Que todos vós, meus queridos irmãos, sintais alívio junto d’Aquele cujo jugo é suave e cuja carga é leve (cf. Mt 11, 30). Não tenhais medo de fazer vossa a Cruz de Jesus, pois Ele já fez Sua a vossa cruz. Ele é o nosso Cireneu. É Ele que carrega a nossa cruz, a nossa cruz de cada dia. Não sobrecarreguemos a cruz dos outros. E ajudemos a transportar a cruz aos outros!
Fonte:AQUI

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.