A palavra referendo é
um nome que provém do verbo latino refero (derivado de re+fero),
excessivamente polissémico para assumirmos inequivocamente uma das suas
aceções. Uma coisa é certa: a morfologia da palavra portuguesa remete para a
noção de futuro e de obrigação ou necessidade inerente ao gerundivo do verbo
latino. E aí parece que se tratará de ato de “trazer de novo”, “referir”,
“trazer e levar” ou vice-versa, “entregar”. E, sim, o legislador, leva ao povo
uma questão em concreto, o qual, ao pronunciar-se, lha devolve num determinado
direcionamento.
É óbvio que a ciência política, tendo-se inspirado na
etimologia, tal como a generalidade das ciências, não fica presa nas brumas das
etimologias e facilmente obtém meios de formulação dos seus conceitos.
Não se deve, entretanto, confundir o referendo com a “referenda
ministerial”, prevista na Constituição para algumas matérias, sob pena da
inexistência jurídica do ato, e que consiste na aposição da assinatura do
Primeiro-Ministro, ou de quem legalmente o substitua, e do ministro da tutela
num diploma promulgado pelo Presidente da República (cf artigo 140.º da CRP).
No caso em questão, referendo é
um instrumento que a democracia representativa encontra para episodicamente se
comportar como se democracia direta fosse – o que permite afirmar que as
democracias que frequentemente o utilizem são democracias semidiretas. Enquanto
as diversas matérias são votadas pelos representantes que o povo elegeu (a
eleição, do verbo latino “eligo”, implica escolha e não somente uma
resposta de “sim” ou de “não”) com base em programas supostamente ideológicos e
pragmáticos, para alguns assuntos de relevante e excecional interesse, os
cidadãos eleitores são chamados a pronunciar-se por sufrágio direto e secreto.
E, nos países, que o levam a sério, as suas consequências serão análogas às dos
demais atos eleitorais. Não me parece politicamente honesta a definição de
consequências de vinculação ou não consoante o nível de participação eleitoral,
quando a mesma definição se não faz relativamente a outros atos eleitorais.
Há quem distinga claramente entre referendo e
plebiscito (do latim plebs+scito,
saiba ou saberá o povo). Tal distinção tem sentido no direito latino em que o
plebiscito é convocado antes da criação da norma (ato
legislativo ou administrativo), e é o povo que, através do voto, aprova ou não
a questão que lhe é submetida. Por regra, o plebiscito nacional visa a
formulação de uma lei, ao passo que o plebiscito local visa a formulação de uma
disposição administrativa. Por seu turno, o referendo é convocado após a
edição da norma, devendo o povo ratificá-la ou não. Porém, no direito
anglo-saxónico, os referidos termos “plebiscito" e "referendo” são
usados quase como sinónimos, tornando-se a sua distinção obnubilada.
A experiência portuguesa parece seguir a
obnubilação anglo-saxónica, como se verá a seguir.
A CRP (Constituição da República Portuguesa) dispõe, no
artigo 115.º, que, sob proposta da Assembleia da República, do Governo – na
esfera das respetivas competências – ou por iniciativa de um grupo de cidadãos
dirigida à Assembleia da República, pode o Presidente da República convocar o
referendo no qual serão chamados a votar todos os cidadãos recenseados no
território nacional, o que exclui deste tipo de sufrágio os emigrantes. E os
artigos 232.º e 240.º preveem a possibilidade de referendo, respetivamente, a
nível regional e local.
Como em Portugal um referendo só é juridicamente vinculativo no
caso de a participação ser igual ou superior a 50%, até à data nenhum o foi. No
sufrágio sobre a regionalização e nos dois sobre a interrupção voluntária
da gravidez (eufemismo para designar o aborto praticado nas condições previstas
legalmente), a abstenção foi sempre superior a 50%.
Todavia, antes da realização do segundo escrutínio sobre o
aborto, uma questão profundamente fraturante na sociedade portuguesa, o
Governo comprometeu-se a legislar, independentemente do número de
votantes, em consonância com a vontade da maioria dos que fossem às urnas; isto
é, caso o resultado não fosse vinculativo (como não foi), o governo
acataria a recomendação popular, atribuindo previamente um caráter
vinculativo a ato que, per se, dele carecia. Por conseguinte, o
Parlamento português aprovou, por ampla maioria, a Lei n.º 16/2007, de 17 de
abril de 2007, que incorporou à legislação portuguesa o que fora recomendado
pela população no referendo sobre o aborto realizado pouco antes.
Porém, sempre que o referendo foi convocado, já estava em franco
avanço o estudo da norma, embora sem votação global final – o que dá a entender
que o ato referendário nem configura em termos de pureza de ato o referendo nem
o plebiscito. Quanto ao ato plebiscitário, a única matéria levada a plebiscito,
de que me recorde, foi a Constituição Política, de 1933. E esta
norma fundamental já estava mesmo elaborada, só não tinha entrado formalmente
em vigor. Mas deixou sequelas na memória política coletiva:
Esse “plebiscito nacional”, como foi designado, ou referendo,
como parece dever tecnicamente chamar-se, tornou-se um exemplo deplorável do
uso perverso de uma verdadeira consulta popular. Não só as abstenções foram
somadas à contagem das respostas de “sim” – ludibriando a vontade da maioria –
como esse ato referendário tinha um caráter nitidamente “delegatório”,
que serviu de cheque em branco para a institucionalização da Ditadura Nacional,
doravante o regime do Estado Novo, sob a égide de Oliveira Salazar.
O uso delegatório do referendo não é permitido
pelas modernas constituições democráticas, que instituem salvaguardas para
evitar essas distorções. A CRP, entre nós, incorpora múltiplas salvaguardas
para evitar o uso distorcido do referendo. Além da referida condição exigida
para o caráter vinculativo, ficam excluídas da consulta popular várias
matérias: as alterações à Constituição; as questões e os atos de conteúdo
orçamental, tributário e financeiro; as matérias previstas nos artigos 161.º
(exceto a matéria referente a tratados internacionais que não se refiram à paz
e à retificação de fronteiras) e 164.º (exceto as bases do sistema de ensino).
Por outro lado, estabelece-se que o referendo deve incidir sobre uma única
matéria, a pergunta deve ser clara e submetida à apreciação prévia do Tribunal
Constitucional.
Todavia, não podemos deixar de referir que, além de o nosso
ordenamento constitucional acautelar com demasiados espartilhos os possíveis
abusos do referendo, há um certo receio do referendo. Não se operou uma revisão
constitucional que previsse o referendo ao tratado que estabeleceu a União
Europeia, em 1992, apesar de o Presidente da República, ao tempo, ter
pressagiado o “hão de arrepender-se”. Procedeu-se a uma revisão constitucional
para possibilitar o referendo sobre matéria europeia, mas os poderes, apesar de
os partidos o haverem prometido em campanha eleitoral, não levaram a referendo
o Tratado de Lisboa, obviamente depois de terem olhado para a experiência europeia.
Houve um país em que a mesma matéria europeia foi duas vezes consecutivas a
referendo.
Outro entendimento há que, por vezes, divide a opinião pública e
política portuguesa. Uns defendem que os temas fraturantes devem ser sempre
sujeitos a referendo; outros, alegando que as matérias habitualmente
catalogadas como fraturantes configuram direitos fundamentais, não aceitam
facilmente essa exigência, argumentando que um direito fundamental não é
referendável. Depois, sempre que há referendo, lá vêm as vozes daqueles que
acusam o poder legislativo de que a discussão em sede própria já começou e
outras a dizer que ainda o processo não chegou a seu termo, pelo que ainda há
tempo de referendo. E ainda se regista, por vezes, a ginástica política de mau
conselho a driblar o tempo político e degradar a imagem da seriedade do
Parlamento, como foi o caso da coadoção.
Em minha opinião, penso que matérias que constem expressa e
claramente de programa eleitoral de um partido que, por si só, ganhe eleições
com maioria absoluta, não devem ser submetidas a referendo, uma vez que quem
vota deve assumir a responsabilidade do voto. Havendo necessidade de decidir
sobre matérias que não reúnam as condições anteriormente definidas, devem ser
submetidas a referendo porque maioria relativa ou maioria absoluta resultante
de forças partidárias coligadas após o conhecimento do ato eleitoral, embora
garantam a representatividade aritmética do eleitorado, não correspondem à
vontade maioritária cidadã e sociológica. Levado a cabo o referendo, ele deverá
ter consequências de acordo com o sentido maioritário do voto validamente
expresso. Outra forma de atuar significa que não se leva o povo a sério, que se
brinca com coisas sérias e que não se ousa responsabilizar o abstencionismo.
Por outro lado, sendo a regra da democracia o seguimento da vontade popular
maioritária, embora com o escrupuloso respeito pelos direitos das minorias, não
pode a vontade das minorias impor-se como norma ou conduta modelar.
Olhando para outros países, verificámos que alguns levam a sério
o referendo como as eleições. A título de exemplo, recordo a Dinamarca, que,
por via do referendo, ficou fora da Zona Euro, e a Suíça, que vai recolocar por
via legislativa a problemática da imigração, em consequência de recente ato referendário.
Quanto ao referendo na Crimeia, quero dizer que: os ucranianos o
tentaram torpedear, os russos o resguardaram de forma intimidatória, colocando
tropas à sua guarda, e os cidadãos da Crimeia não o levaram a sério. Vão a
referendo sobre o “sim” ou “não” à independência em relação à Ucrânia. Ganha o
“sim” pela esmagadora maioria de 96% e, a seguir, o Parlamento da Crimeia
declara formalmente a independência da Crimeia e, ato contínuo, solicita a
anexação formal à Federação Russa. Russos tudo aceitam, Estado Ucraniano reage
mal, União Europeia e EUA ameaçam a Rússia com sanções. Já agora a sublevação
ucraniana depôs governo eleito.
Afinal, referendo deve ou não ter “consequências consequentes”?
E eleição, também ou não?!
Louro de Carvalho
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