Hanna Arendt explica bem como este tempo a que nós chamamos, à falta de nome definitivo, era moderna se funda na inversão de posições entre a contemplação e a ação.
Os modos da existência contemplativa foram despojados da sua áurea (e, em grande medida, dos seus direitos de cidadania) e só a vida ativa é considerada legítima. O resultado foi a transformação efetiva de todo o agregado humano numa sociedade de trabalhadores.
O trabalho passou a ser visto como o fator determinante para a humanização, e o valor de cada pessoa vem descrito pelo valor económico que lhe está associado. Mesmo os reis e os presidentes, os médicos e os filósofos (etc, etc) passaram a olhar a sua atividade como um ganha-pão. Deixou de haver lugar para itinerários de natureza espiritual, artística ou política, dos quais pudessem brotar a evidência de dimensões humanas que a atividade laboral não cobre.
Ao perdermos a certeza naquelas realidades que a crença ou as artes iluminam, as nossas sociedades passaram a consolidar-se sempre mais como uma esfera de trabalho, e a satisfação das necessidades vitais impôs-se como o verdadeiro (para não dizer o exclusivo) elemento polarizador da atividade humana.
Mas Arendt pressiona ainda a nossa ferida e escreve: a perda da fé numa vida futura (ou numa vida diferente) não nos fez propriamente ganhar a vida. Longe disso. Tudo ficou, simplesmente, afetado pela instabilidade fundamental que carregamos. O que se desencadeou, no fundo, foi uma corrida cega para a frente, para não pensar muito nisso. Chegámos assim à hiperinflação do mundo do trabalho e à banalização redentora do consumo. Vivemos para trabalhar e para consumir. A vida e os bens que ela produz passaram a valer o mesmo não sei quê, esquivo e imediato, como a chama de um fósforo.
E não é tudo, como agora se vê. O campo do trabalho vive hoje uma convulsão que foge em muito ao nosso controlo e que nos obrigará a curto prazo a uma revisão de paradigma civilizacional. Os irrazoáveis números do desemprego testemunham a extensão da incerteza em que naufragámos.
Mas, mesmo mantendo um trabalho, muitos veem-se obrigados a defendê-lo a todo o custo, com uma sensação repetida de frustração, irracionalidade e solidão. Os problemas dos limites colocam-se cada vez mais. Acentua-se o fosso entre o que é possível e o que é pedido, numa aceleração permanente contra o tempo. A implacabilidade do sistema de trabalho cada vez menos respeita e acolhe a fragilidade da vida. Os trabalhadores têm de ser perfeitos e neutros como as máquinas que os rodeiam.
O psicólogo americano Gregory Bateson descreve as atuais práticas das grandes empresas como aquelas mães que dão com os filhos em esquizofrénicos com a quantidade de "injunções paradoxais" que lhes transmitem, sempre impossíveis de satisfazer, mas cada vez mais imperativas. Aumentam os objetivos a alcançar com meios assumidamente diminuídos. Quer-se maior qualidade e menor investimento. Estimula-se a autonomia e a criatividade individual à medida que se reforça o peso do controlo e a sofisticação extenuante dos processos. A racionalidade opera em banda estreita e veiculada a um uso puramente instrumental.
A crise contemporânea da atividade produtiva coloca-nos perante uma encruzilhada. E volto às palavras proféticas de Hanna Arendt: «O que se nos depara é a perspetiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta». Precisamos seriamente de conversar.
José Tolentino Mendonça, aqui
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