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Era da aldeia, mas cedo partiu para outras bandas. De longe em longe aparecia, bem aperaltado, figura de fidalgo, falando do alto do seu convencimento perante conterrâneos que o tratavam por "senhor".
A miudagem juntava-se sempre que algo diferente aparecia. Ficava ao largo, a observar, alguns com os irmãos ao colo. O tal fidalgote falava com umas pessoas que lhe respondiam a meia voz, submissas.
Eis que aparece um homem vergado ao molho de erva medonho que trazia às costas.Só inclinando a cabeça é que descobria quem estava. Cumprimentou o cavalheiro bem-vestido que era da sua idade, tratando-o por senhor.
- Sempre a trabalhar que nem um galego- comentou o visitante.
- Tem razão. E saiba o senhor que nem assim tenho o suficiente para matar a fome aos meus filhos! - respondeu acabrunhado o do molho.
- Então, rouba, homem! Rouba! Quem trabuca como tu e não consegue dar pão aos filhos, só tem que roubar...
Grandes e pequenos coraram com a blasfémia. Roubar!? Credo! Era o cúmulo da indignidade segundo o código moral daquela gente.
- Maldito Salazar! Ele é que é o responsável pela vossa miséria! - sentenciou o bem-vestido.
Foi a primeira vez que ouvi falar em tal nome. Achei-lhe imensa piada e retive-o. As pessoas chamavam-se Zé, António, Maria, Ana... Salazar?! Que raio de nome!
O homem foi à sua vida. Os aldeões comentaram em surdina:
- Deus nos livre! Credo! Este é contra o governo!
Política era tema afastado das conversas diárias das pessoas. Pura e simplesmente não se falava.
A religião era omnipresente. As pessoas interrompiam o trabalho no campo para rezar o "Angelus", quando o Sol indicasse o meio-dia. À noite, a labuta terminava quando o dono do terreno, tirando o chapéu, dizia: "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo". Os trabalhadores, erguendo-se, tiravam igualmente o chapéu e respondiam: "Para sempre seja louvado." E nem mais uma cavadela.
Quem passasse pelos caminhos da aldeia após a ceia, ouvia um murmúrio cadenciado, monótono, prolongado, que saía de cada casa. As famílias rezavam o terço.
Ao domingo, só duas pessoas ficavam sem Eucaristia, sendo que uma delas mais tarde veio a frequentar. Capela cheia como um ovo, alguns homens e bastantes rapazes no adro. Como a Missa era em Latim, as pessoas mais velhas iam bichanando o terço, enquanto um ou outro cântico interrompia o silêncio. Os rapazes, abriam a boca e, à socapa, lá faziam uma ou outra maroteira não barulhenta, aguardando ansiosamente pelo fim da cerimónia.
No sentir, no falar, nos actos, havia um profundo respeito por Deus. Corria o ditado que cada família transmitia aos mais novos: "Graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas."
Os pais, especialmente as mães, educavam para a abertura ao transcendente desde o berço. E a primeira palavra que os filhos pronunciavam era Jesus. Frequentemente a mãe perguntava à criança que trazia ao colo: "Onde está Jesus?" E o pequeno, erguia o dedito para o Céu...
- Era uma religião muito marcado pelo medo do Inferno? Sim.
- Era uma religião mais assente no medo de Deus do que na confiança n'Ele? Sim. Era normal dizer-se a alguém que fizera uma asneira e depois tivesse um percalço: "Deus castiga sem pau nem pedra." E para amansar as crianças, lá vinha o aviso: "Deus ralha". E a trovoada era "Deus a ralhar".
- Era uma religião individualista, estilo ping-pong, eu e Deus, Deus e eu? Sim. Ouvia-se frequentemente: "Eu quero é salvar a minha alminha."
- Era uma religião mais marcada pelo pressão social do que pela convicção, a quem faltavam razões de acreditar? Sim.
Mas a religião era marcante e unificante. Dava esperança (nem que fosse o Céu) e coragem para enfrentar as agruras da vida. Impelia muitos para a caridade e para a ajuda. Não era em vão que os pobres batiam à porta e pediam: "Dê-me alguma coisinha, pelo amor de Deus!" Esbatia ódios e teimosias, impedia desmandos e tropelias.
A miudagem juntava-se sempre que algo diferente aparecia. Ficava ao largo, a observar, alguns com os irmãos ao colo. O tal fidalgote falava com umas pessoas que lhe respondiam a meia voz, submissas.
Eis que aparece um homem vergado ao molho de erva medonho que trazia às costas.Só inclinando a cabeça é que descobria quem estava. Cumprimentou o cavalheiro bem-vestido que era da sua idade, tratando-o por senhor.
- Sempre a trabalhar que nem um galego- comentou o visitante.
- Tem razão. E saiba o senhor que nem assim tenho o suficiente para matar a fome aos meus filhos! - respondeu acabrunhado o do molho.
- Então, rouba, homem! Rouba! Quem trabuca como tu e não consegue dar pão aos filhos, só tem que roubar...
Grandes e pequenos coraram com a blasfémia. Roubar!? Credo! Era o cúmulo da indignidade segundo o código moral daquela gente.
- Maldito Salazar! Ele é que é o responsável pela vossa miséria! - sentenciou o bem-vestido.
Foi a primeira vez que ouvi falar em tal nome. Achei-lhe imensa piada e retive-o. As pessoas chamavam-se Zé, António, Maria, Ana... Salazar?! Que raio de nome!
O homem foi à sua vida. Os aldeões comentaram em surdina:
- Deus nos livre! Credo! Este é contra o governo!
Política era tema afastado das conversas diárias das pessoas. Pura e simplesmente não se falava.
A religião era omnipresente. As pessoas interrompiam o trabalho no campo para rezar o "Angelus", quando o Sol indicasse o meio-dia. À noite, a labuta terminava quando o dono do terreno, tirando o chapéu, dizia: "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo". Os trabalhadores, erguendo-se, tiravam igualmente o chapéu e respondiam: "Para sempre seja louvado." E nem mais uma cavadela.
Quem passasse pelos caminhos da aldeia após a ceia, ouvia um murmúrio cadenciado, monótono, prolongado, que saía de cada casa. As famílias rezavam o terço.
Ao domingo, só duas pessoas ficavam sem Eucaristia, sendo que uma delas mais tarde veio a frequentar. Capela cheia como um ovo, alguns homens e bastantes rapazes no adro. Como a Missa era em Latim, as pessoas mais velhas iam bichanando o terço, enquanto um ou outro cântico interrompia o silêncio. Os rapazes, abriam a boca e, à socapa, lá faziam uma ou outra maroteira não barulhenta, aguardando ansiosamente pelo fim da cerimónia.
No sentir, no falar, nos actos, havia um profundo respeito por Deus. Corria o ditado que cada família transmitia aos mais novos: "Graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas."
Os pais, especialmente as mães, educavam para a abertura ao transcendente desde o berço. E a primeira palavra que os filhos pronunciavam era Jesus. Frequentemente a mãe perguntava à criança que trazia ao colo: "Onde está Jesus?" E o pequeno, erguia o dedito para o Céu...
- Era uma religião muito marcado pelo medo do Inferno? Sim.
- Era uma religião mais assente no medo de Deus do que na confiança n'Ele? Sim. Era normal dizer-se a alguém que fizera uma asneira e depois tivesse um percalço: "Deus castiga sem pau nem pedra." E para amansar as crianças, lá vinha o aviso: "Deus ralha". E a trovoada era "Deus a ralhar".
- Era uma religião individualista, estilo ping-pong, eu e Deus, Deus e eu? Sim. Ouvia-se frequentemente: "Eu quero é salvar a minha alminha."
- Era uma religião mais marcada pelo pressão social do que pela convicção, a quem faltavam razões de acreditar? Sim.
Mas a religião era marcante e unificante. Dava esperança (nem que fosse o Céu) e coragem para enfrentar as agruras da vida. Impelia muitos para a caridade e para a ajuda. Não era em vão que os pobres batiam à porta e pediam: "Dê-me alguma coisinha, pelo amor de Deus!" Esbatia ódios e teimosias, impedia desmandos e tropelias.
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