terça-feira, 27 de julho de 2010

Numa Aldeia da Serra, há 50 anos - I

Alimentação ao ritmo da natureza


Há 50 anos, as aldeias serranas estavam, normalmente, isoladas e entregues a si mesmas. Não havia reformas, nem abonos de família, nem subsídios, nem Serviço Nacional de Saúde, nem estradas, nem carros, nem electricidade... O telefone público e a rádio a pilhas começavam a chegar ao ritmo da lesma.

As famílias eram geralmente muito numerosas e as casitas pequenas. Não existiam quartos-de-banho nem água canalizada.Quarto individual? Só para o casal, porque os filhos dormiam amontados num quarto e as filhas noutro, quando havia quartos... que eram sempre pequenos.

Neste ambiente, as pessoas harmonizavam-se com os ritmos da natureza, aproveitando o que esta ia oferecendo. Na alimentação, então, isto era claro.

Pela Páscoa, altura em que se vendiam os cabritos, começava a "época do leite" que se prolongava até Setembro, altura em que as cabras "iam para o chibo". Cada família, mesmo as mais pobrezinhas, tinha uma cabra, pelo menos.
Funcionava o "caldo de leite". Leite "extremes", como se dizia, só para doentes ou em dia de festa. À água fervida no pote, juntava-se-lhe o leite para assim dar para todos.
E o "caldo de leite" era cozinhado de diversas maneiras como acontece hoje com os vários tipos de sopa. O mais comum era o "caldo de leite com batatas". Pote com água, deitavam-se-lhe as batatas até cozerem, eram depois esmigalhadas com a colher-de-pau e depois misturava-se-lhe o leite. Depois de nova fervura, estava pronto o "petisco" que era servido em malgas, grandes para os grandes; pequenas para os pequenos.
Também havia "caldo de leite com farinha", o caldo de leite com arroz e massa (aos domingos e dias mais importantes), o leite misturado na água e fervido que, tirado para as malgas, era migado com um naco de pau de milho.

Em Setembro, começava a época das "batatas rachadas" que se prolongava até meados de Outubro. Os trabalhadores, aos arrancarem as batatas à enxada, rachavam algumas. Na carreira, as apanhadeiras faziam a separação. Batatas graúdas (para vender), iam para sacos (que eram de pano); as batatas da "semente", (mais miúdas) iam para outro saco e destinavam-se ao consumo da família pelo ano fora; as "miudinhas" eram colocados noutro saco para alimentação dos porcos. Para estes eram também reservadas as batatas que tivessem algum podre. Finalmente as batatas rachadas eram apanhadas para outra saca. Porque grandes, eram estas que mais estavam ao alcance da lâmina das enxadas.
Então durante aquele tempo, e para que nada se perdesse, já que as batatas tocadas apodreciam mais depressa, eram cozinhadas das mais diversas formas. Com casca, partidas ao meio, e depois servidas com uma sardinhita salgada... Ou cozidas descascadas e depois comidas com "um fiozinho de azeite", uma amostra de bacalhau ou carne gorda que havia sido frita na sertã e cujo molho servia de azeite... Também havia as batas amassadas (espécie de puré às três pancadas) e as batatas com um canudito de massa.

De Meados de Outubro até ao Natal era a época das castanhas. As maiores eram separadas para vender. As outras eram para cozinhar em casa. As castanhas coziam-se num púcaro de barro para a refeição do meio dia (a que chamavam 'jantar') e depois o tal púcaro ficava no borralho, tostando mais as castanhas, que eram comidas pela tarde fora, substituindo ou diminuindo o consumo da broa de milho que, por norma, estava dependurada na tábua para que os pequenos não comessem tanto e assim o pão durasse mais.

Do Natal até Março era a época mais agradável para todos. O tempo da carne de porco que era totalmente aproveitada.
Após a matança, apareciam as febras, os torresmos, os ossos tenros, os miolos... Tudo era escrupulosamente orientado para a alimentação. Os torresmos, depois de fritos, eram guardados na própria manteiga que deles havia saído para melhor se conservarem. E então durante uns dias comiam-se batatas cozidas com torresmos e regadas a manteiga liquefeita.
Depois surgiam as moiras. Cozidas na sopa que adubavam, eram retiradas e partidas aos bocadinhos, um para cada pessoa, que o comia com um pedacito de broa. Vinha depois uma tigela de sopa.
O salpicão e a chouriça eram guardados para o domingo, dias de festa e grandes trabalhos agrícolas como avessadas e ceifas. Os presuntos? Bem, os mais pobres vendiam-nos. Os menos pobres vendiam um e ficavam com o outro. Os mais abastaditos lá guardavam os dois. Os presuntos eram o que de mais nobre tinham os agricultores para servirem a uma visita importante. O lavrador das terras, trabalho muito prestigiado ao tempo, também era contemplado com um naco de presunto. Acrescente-se que havia na terra alguns homens que tinham uma parelha de vacas amarelas ou de bois e que ganhavam o dia lavrando as terras dos outros.

Naquele tempo, a regra era forrar o máximo na alimentação, usando até ao limite aquilo que a natureza punha à disposição, quer porque não havia dinheiros para compras, quer porque era preciso poupar o máximo para prevenir qualquer contratempo, como uma doença e guardar algum para a velhice.

Leite de vaca? Nem pensar. Quem o tinha era para vender. Carne de galinha? Só para as parturientes naqueles oito dias pós-parto que era sempre realizado em casa com a ajuda da parteira. Carne de cordeiro? Na festa. Os agricultores mais abonaditos lá matavam um cordeiro nos tempos fortes das avessadas e das ceifas quando juntavam muita gente nesses trabalhos.

Lembrando que os trabalhos no campo começavam antes do Sol nascer e terminavam após o Sol se pôr, havia 5 refeições: mata-bicho, logo ao começar(uma côdea de pau e um cálice de aguardente para os homens); almoço, pelas 9/10 horas (uma malga de sopa); jantar, pelas 12 horas (sopa e conduto); merenda, pelo meio da tarde (por regra, pão com azeitonas ou com uma sardinha frita): ceia (nos termos que referi acima).

Só mais uma nota que isto vai longo. A sopa era comida em malgas individuais e nas famílias cada um tinha a sua malga, até para assim a estimar melhor. Mas o conduto era servido num grande prato comum donde cada um ia tirando com o seu garfo.

1 comentário:

  1. Um relato fascinante de uma realidade com 50 anos, provavelmente, diria eu, até menos!
    Salazar faleceu faz hoje 40 anos.
    Excelente a oportunidade para melhor se poder comparar os “duas distintas vivências” de um só país e num espaço de tempo que não trespassa mais do que quatro décadas.
    O fascinante é que se comia pouco e tão mal e que tanto se trabalhava.
    Estará aí a causa da actual propalada falta de produtividade? Não acredito.
    Mas dá que pensar … e muito.
    E dá para mostrar aos mais jovens (nos quais ainda me incluo!) como, apesar de tantas contrariedades, é bem mais fácil e facilitada a vida de hoje em dia e como, afinal, é estúpida esta nossa forma de viver, em constante insatisfação quando … temos tudo e podemos dar aos nossos filhos tudo o que não lhes faz falta alguma.
    NPL

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