segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O senhor Carvalho

Dizia-se ateu. Não com arrogância ou petulância. Afirmava que tinha pena, mas que não tinha fé.
Todos os padres da região, mais "conservadores" ou mais "progressistas" tinham pelo senhor Carvalho grande respeito e muitos sincera amizade. E ele sentia-se muito feliz por isso. Sua esposa assumia-se como cristã e nunca recebeu de seu marido outra coisa que não fosse respeito profundo e impulso para praticar a sua fé. Deste casal nasceu um único filho que, depois de formado, emigrou, casou com uma senhora estrangeira e por lá exercia a medicina. Era um católico assumido e activo na vida da sua comunidade.
O senhor Carvalho brincava com a situação e a brincadeira nele assentava como uma luva:
- Quer queira, quer não, tenho mesmo que ir para o Céu! O meu filho e a minha minha mulher a puxarem por mim e depois tantos padres a empurrar-me...
Tinha o senhor Carvalho um pequeno estabelecimento comercial que nunca o enriqueceu, nem pouco mais ou menos. E a razão era simples. A atenção permanente aos pobres e desfavorecidos. Aqui residia a sua coerência. Não era comunista só de nome, mas exercia a solidariedade, sempre sem dar nas vistas. Quantas vezes aparecia em casa de pessoas carenciadas, quase como quem pede licença para bater à porta. Logo que a pessoa aparecia, o ritual repetia. Sorria e dizia:
- Bom dia. Tome. É para si.
Debandava, levantando a mão aos agradecimentos como se estes martelassem o seu espírito solidário.
Porque tinha muitos amigos, era uma presença habitual em casamentos e baptizados. Nunca dizia que não logo que pudesse. Ouvi-o justificar-se:
- Não é pelos comes e bebes que vou a estas festas. Felizmente vou tendo o necessário para mim. Vou por amizade, porque gosto de estar com os amigos nos momentos mais importantes, sejam eles de festa ou de sofrimento.
E acrescentava:
- Entro sempre na Igreja e comporto-me com decência. Não é que a cerimónia religiosa a mim me diga alguma coisa. Mas é por respeito para com quem me convida. Se me convidam, é porque gostam que eu esteja presente.
Certo ano, fui colocado a leccionar na sua vila. Fiquei hospedado em casa de uma santa senhora que fez o favor de me acolher. A casa ficava perto da dele. Como não tinha garagem, o meu carrito permanecia na rua. O senhor Carvalho apercebeu-se e mandou dizer à senhora que me acolheu:
- Pegue a chave da minha garagem que já desocupei. É para o senhor Padre lá deixar o carro.
O senhor Carvalho dizia-se ateu. Mas penso que pelas obras estava muito perto de Cristo que certamente já o acolheu no Mundo Novo do Amor, onde o amor de Cristo que tudo vence o libertou de todas as limitações.

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