quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

As barrigas têm coração


O novo governo precisava disto. Um projeto que galvanizasse as cadeiras à esquerda do hemiciclo, afirmando (antes de mais) para dentro e para fora, que a esquerda está unida! Houvera quem duvidasse, tais suspeitas caíram. Logo na primeira oportunidade, levou-se à discussão um conjunto de decisões chamadas fraturantes. E, afinal, sem qualquer fratura a não ser nuns banquinhos mais à direita, tudo foi aprovado.

Fixemo-nos no projeto de lei apresentado pelo Bloco de Esquerda sobre a gestação de substituição, vulgo “barrigas de aluguer”. Há, ao longo de todo o texto, desde a exposição de motivos ao último artigo, uma ausência quase absoluta, muito significativa e perturbadora: não se fala da criança que vier a nascer deste processo. Quer dizer: trata-se assumidamente do direito individual da mulher, acima de todo e qualquer direito do nascituro.

Mas porque é que se centra todo o discurso no direito da mulher a produzir um filho e nem sequer se refere a necessidade que o filho tem de ter uma estrutura humana que o acolha saudavelmente? A única referência, também perturbadora pelo extremo simplismo, surge numa pequena frase: “A criança que nascer é tida como filha dos respetivos beneficiários” (Artigo 8º, nº6). Como se fosse a coisa mais natural do mundo trazer um filho de outros durante nove meses na barriga. No entanto, o nº 1 do art. 8º diz que a mulher que suportou a gravidez, renuncia “aos poderes e deveres próprios da maternidade”. Ora, como só renunciamos ao que nos pertence, de facto ou por direito, este artigo reconhece que a maternidade é qualidade da mulher grávida (aliás, como previa a lei de 2006: “A mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer”).

Mais, confere-lhe um direito absolutamente inusitado: renunciar aos deveres próprios da maternidade. Renunciar a um dever?! Está bem. Mando dizer ao meu chefe que hoje decidi renunciar ao dever próprio de ir trabalhar.

O BE, convencido do seu progressismo, revela-se, afinal, uma organização discriminatória das minorias. Discrimina os homens. Diz o texto que este projeto de lei defende “a eliminação da condição de se ser casado ou viver em união de facto como critério de recurso às técnicas de PMA. Desta forma estaremos a permitir o acesso a todos os casais e a todas as mulheres independentemente do seu estado civil”. E os homens? Por que não podem os homens recorrer às barrigas de aluguer? Se ser solteiro não é impedimento e não ter útero (ou lesão do mesmo) é condição, porque não são os homens tidos em conta neste projeto?

Não deixa de ser interessante que, afirmando-se o BE como o baluarte dos direitos das mulheres, promovendo, por exemplo, o direito ao aborto como decorrente do direito da mulher a decidir do seu próprio corpo, etc., venha a defender que a mulher seja passível de se tornar propriedade para alugar (sim, eu sei que não se prevê a inclusão de qualquer pagamento por este “serviço”). Mesmo que seja uma decisão individual daquela mulher em concreto (cuja intenção pode ser a melhor!), o princípio é que a mulher pode ser aproveitada para propriedade alheia. Instrumentalizar assim as mulheres nem parece do BE.

Falemos do óbvio. Uma barriga geralmente traz consigo um coração que sente e uma cabeça que pensa. O que se pede à mulher que “suporta a gravidez” é, das duas uma: que não pense nem sinta nada, que seja uma “coisa”, uma caixa, uma incubadora, apenas cumprindo o estipulado no acordo, tal e só como uma máquina (o que, para além de impossível, seria desumano – para a mulher e para a criança); ou que seja o que uma mãe é quando está à espera de bebé. Ao longo de nove meses, enjoa-se nos primeiros tempos, espanta-se quando sente os primeiros pontapés, ri-se quando sente os movimentos, alegra-se quando vê que está tudo bem na ecografia, obriga-se a repouso absoluto quando o bebé corre perigo… aqui apenas com um pormenor: ao fim de nove meses, é obrigada (sim, mesmo que tenha assinado um papel de livre vontade) a uma ruptura nesta relação, provocada pela entrega da criança aos “beneficiários”. Não se pode negar a violência gerada pela mecanização desta relação.

Um “suponhamos”: suponhamos que é diagnosticada à criança a síndrome de Down, por exemplo. A mulher que a tem na barriga, porque desenvolveu uma sensibilidade materna (certamente por incompetência não conseguiu reduzir-se a incubadora), quer levar a gravidez até ao fim e que os “beneficiários” não querem. Ou que a mulher quer fazer um aborto e que os “benificiários” não querem. Isto só para levantar uma questão, entre tantas outras.

Ao ter sérias reservas e acusar a imoralidade desta lei, não se trata de negar a possibilidade a casais que não podem ter filhos por inexistência ou lesão do útero da mulher. Não se trata de negar que algumas mulheres até se ofereceriam honestamente para serem “barrigas de aluguer” com uma séria intenção de ajuda a quem não pode “trazer” os seus filhos. Trata-se de uma mudança de paradigma. Algumas perspectivas de vida centram toda a sua visão no direito absoluto da mulher a produzir e possuir um filho. E este é um princípio que desumaniza. Porque não se pode usar os outros (ou as outras) como meios para atingir os fins pessoais. Porque as pessoas não se possuem. Porque um filho não é um direito.
P. Miguel Almeida, sj - Observador 2/12/2015, aqui

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