terça-feira, 20 de outubro de 2015

O actor perdido na personagem


Estamos perante um daqueles casos em que a provocadora tese de Nietzsche, "não há factos, só interpretações" parece mais consistente do que nunca. Mas como acontece com todos os processos dramáticos, também neste folhetim da formação de governo, o bom actor é aquele que representa suficientemente bem para ser convincente, mas preserva, ao mesmo tempo, a distância crítica bastante para não se confundir com a sua personagem ao ponto de perder a chave de regresso à sua própria pessoa. Ao fechar a porta ao diálogo com a Coligação de direita, na base de alegadas divergências políticas, António Costa (AC) parece cada vez mais perdido dentro do personagem que construiu para se esconder da sua derrota eleitoral de 4 de Outubro: o pacificador das esquerdas. O personagem que tomou conta de AC é um futuro primeiro-ministro capaz de sarar um século de feridas entre mancheviques e bolcheviques, com algumas reuniões amenas e sorrisos amáveis. O problema é que a distância entre a direita e o PS, em Portugal e nas respectivas famílias europeias, é de quantidade, enquanto a diferença com os partidos à sua esquerda é de visão do mundo. É ontológica. Tem muito sangue, suor e lágrimas pelo meio. As esquerdas de que AC se sente tão próximo, são feitas de fibras, memórias, sonhos, visões de futuro para a Europa que não permitiriam sobreviver mais de um semestre a um governo minoritário do PS. O AC que pediu maioria absoluta na campanha eleitoral parecia perceber isto. O personagem em que AC se refugiou desde a derrota eleitoral, contudo, parece acreditar no milagre da "facilitação" (uma palavra querida do PSD) à esquerda. O PR vai seguir o guião constitucional. Vamos ver se o PS ajuda o seu líder a sair do transe em que parece mergulhado, ou se, pelo contrário, a hipnose se torna inquietantemente contagiante.
Viriato Soromenho Marques, DN 2015.10.20, aqui

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