O abismo crescente entre ricos e pobres supera até mesmo o pavor do ebola e do Estado Islâmico
"Não recebestes o espírito de escravidão para recairdes no temor, mas o espírito de adoção, pelo qual clamamos: Aba, Pai!" (Romanos 8,15).
Se a sua única janela para o mundo fosse a televisão, seria compreensível que você achasse o ebola e o Estado Islâmico os dois maiores motivos de pavor existentes na atualidade.
E é isto, aliás, o que parece que os meios de comunicação querem nos convencer a pensar: que uma horda de fanáticos extremistas e um vírus letal estão prestes a matar todo mundo, muito embora as maiores ameaças físicas ao nosso bem-estar individual continuem sendo as doenças cardíacas, o câncer, os desastres de trânsito, a violência armada e os acidentes domésticos.
Apesar da mídia, porém, a população dos países mais desenvolvidos do mundo parece estar mais atenta à “realidade real” do que às realidades potenciais mais remotas. O Instituto de Pesquisas Pew, dos Estados Unidos, entrevistou mais de 48.000 pessoas em 44 países pedindo que elas classificassem cinco grandes ameaças por ordem de importância: armas nucleares, aids e outras doenças, poluição e meio ambiente, ódio religioso e étnico e desigualdade econômica. Em outras palavras, o instituto perguntou aos entrevistados: o que é que mais preocupa você?
Os resultados variaram bastante de região para região e de país para país, mas é muito interessante observar que, na maioria das nações industrializadas ou pós-industriais, a desigualdade econômica foi apontada como a principal preocupação. Nos Estados Unidos, por exemplo, 27% por cento dos entrevistados indicaram a desigualdade como a maior ameaça da atualidade, com o ódio religioso e étnico em segundo lugar (25%), as armas nucleares em terceiro (23%), a poluição em quarto (15%) e as doenças em quinto (7%).
Estes resultados sugerem que, pelo menos nos países mais ricos, a população em geral entende com suficiente clareza os altos riscos decorrentes da desigualdade econômica: ela prejudica o bem-estar das famílias, mina o pacto social e ameaça a própria sobrevivência da democracia. Em comparação com a relativamente pequena chance de morte por ataque terrorista ou pelo ebola, os riscos da desigualdade econômica são perceptivelmente muito maiores.
Na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, o papa Francisco escreveu que enquanto os problemas dos pobres não forem radicalmente resolvidos mediante a rejeição da absoluta autonomia dos mercados e da especulação financeira, bem como mediante o combate às causas estruturais da desigualdade, não haverá solução para os problemas do mundo. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
Quais são os "males sociais" a que o Santo Padre poderia estar se referindo? Além da pobreza em si, temos o aborto, procurado de modo desproporcional pelas mulheres economicamente mais marginalizadas; as dependências e vícios de todo tipo, que se enraízam com mais força na falta de esperança dos mais pobres; o colapso do casamento, que, nos países ricos, já é o melhor indicador independente de empobrecimento, especialmente para as crianças; a depressão e o suicídio, em especial entre os jovens; e uma série de outros males, incluída a ascensão de movimentos radicais e da violência política.
A desigualdade econômica pode ser encarada de duas maneiras: na renda e na riqueza. Há uma ligação íntima entre as duas, é claro, e, da perspectiva de qualquer dessas medidas, a realidade no mundo desenvolvido é sombria. Citando mais um exemplo dos Estados Unidos: a diferença de renda entre os mais ricos e o restante da população daquele país é hoje a maior já verificada desde 1928, o ano anterior ao do início da Grande Depressão.
Entre 1966 e 2011, a renda real norte-americana, ou seja, a renda ajustada pela inflação, foi crescendo a uma média anual de 59 dólares no caso de 90% da população. Durante o mesmo período, a renda real dos 10% mais ricos subiu a uma média anual de 116.000 dólares; a dos milionários que compõem o 1% mais rico da população subiu em média 628.000 dólares; e a dos multimilionários que constituem 0,01% dos norte-americanos teve um aumento médio anual, durante esse período, de nada menos que 18 milhões de dólares. Nos últimos cinco anos, praticamente todos os ganhos de renda nos EUA se concentraram entre os 10% mais ricos, sendo que só a parcela do 1% mais privilegiado do país ficou com 81% de todo o crescimento. Durante esse mesmo período, a renda familiar média dos norte-americanos caiu de forma constante ano após ano, passando de 53.644 dólares em 2008 para pouco mais de 51.000 dólares em 2012.
Como seria de esperar, os números da desigualdade na riqueza acumulada acompanham os da desigualdade na renda. De acordo com estudos mencionados pela Bloomberg BusinessWeek, o 1% mais rico entre os lares americanos possui 40% dos ativos financeiros. Prosseguindo a pirâmide, os próximos 9% mais ricos possuem 35% da riqueza, o que significa que, na soma, 75% dos ativos ficam nas mãos de 10% da população. Sobra assim 25% de toda a riqueza para o restante 90% dos domicílios. A riqueza do extremo topo da pirâmide (0,01% da população dos EUA) quadruplicou desde o início da década de 1980. Hoje, as 16.000 famílias mais ricas do país possuem juntas 6 trilhões de dólares em ativos. A riqueza desse 0,01% da população é maior, portanto, do que a soma dos dois terços inferiores da pirâmide juntos.
Destacar estas estatísticas não implica uma inveja pecaminosa nem uma condenação do capitalismo por atacado. É preciso reconhecer que, entre 1930 e 1970, os Estados Unidos desfrutaram de um dinamismo capitalista robusto, atingindo o seu ápice de igualdade econômica e vivendo a maior expansão da classe média de toda a história da humanidade (é digno de nota, ainda, que boa parte dessa expansão foi favorecida por programas do governo focados em previdência social, eletrificação rural, regulamentação hipotecária e infraestrutura rodoviária, por exemplo).
A desigualdade econômica incomoda ainda mais os norte-americanos porque muitos deles já viveram ou conhecem alguém que viveu uma época diferente, em que havia bons empregos com garantias para os trabalhadores, em que as famílias que podiam comprar uma casa, um carro e pagar a faculdade de três ou quatro filhos ao mesmo tempo, em que a pensão previdenciária era suficiente para uma aposentadoria tranquila.
Mas aqueles dias já se acabaram, graças à globalização, à financeirização da economia, à automação, entre outros fatores. É possível frear ou mesmo reverter esse crescimento da desigualdade sem causar um mal fundamental à própria economia, mas essa tarefa cabe ao governo, que em si mesmo já é objeto de medo para muitos norte-americanos de hoje. Ainda assim, a Doutrina Social da Igreja cobra exclusivamente do governo a responsabilidade de garantir o bem comum, e o bem comum exige que o governo incentive os melhores aspectos do capitalismo, que levam à criatividade e ao crescimento, diminuindo ao mesmo tempo os aspectos ruins, que, se não forem combatidos, resultam em exploração e injustiça e, portanto, ferem a liberdade e a dignidade humanas.
Com a Centesimus Annus, o papa João Paulo II pediu um capitalismo que opere dentro de um "marco jurídico sólido, que o coloque a serviço da liberdade humana em sua totalidade e que o veja como um aspecto particular desta liberdade, cujo núcleo é ético e religioso...". Tal marco reconheceria que, embora certo grau de desigualdade seja natural no sistema capitalista, o grotesco desequilíbrio entre os poucos que são ricos e os muitos que são pobres precisa ser corrigido.
Na ausência de tal marco, há realmente muito a se temer. Inclusive, ou talvez principalmente, por parte dos ricos.
Fonte: aqui
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