quarta-feira, 28 de maio de 2014

O primeiro obstáculo sou eu!


A afirmação epigráfica é do Papa Francisco na ronda de questões lançadas pelos jornalistas aquando do regresso da Terra Santa. Ela encimou a resposta a uma pergunta em concreto sobre os obstáculos à reforma da Cúria Romana. Mesmo assim, ela dá-me azo a uma reflexão mais alargada, embora sem me afastar muito da temática daquele encontro com os jornalistas.

É óbvio que o Papa argentino, quando esclarece os jornalistas sobre o panorama político e social que contextualiza as eleições europeias, como aliás as grandes movimentações no mundo, tem como subjacente que o maior obstáculo às reformas é sempre o homem que se deixe dominar pelo “eu” eivado do egocentrismo, do egoísmo exacerbado, do egotismo.

Com a simplicidade já proverbial de Francisco, temos a resposta a uma pergunta sobre o crescimento do populismo manifestado nas recentes eleições europeias, estribada no facto de nos últimos dias ter tido tempo para rezar um pouco o Pai Nosso, mas não haver disposto de notícias. Mais: confessa que, ao ouvir falar de confiança ou desconfiança na e da Europa ou mesmo da saída do Euro, disto não entende nada. No entanto, não deixa de sublinhar aquilo que deve preocupar todas as pessoas, porque é extremamente grave – o desemprego, a palavra-chave do momento. E a sua grande causa explicita-se de forma muito simples: estamos num sistema económico múltiplo que se centra exclusivamente no dinheiro, quando o centro do verdadeiro sistema económico deve ser a pessoa humana – o homem e a mulher.

Ora, o grande obstáculo à centração do sistema económico no homem é o outro homem, aquele que pensa e diz coisa parecida com isto: o mundo sou eu, o Estado sou eu. Ah, pois, o grande obstáculo sou eu! Não haja a menor dúvida de que o enunciado hobbesiano do homem como lobo do homem tem plena atualidade no hoje do mundo. E os sinais não abrem para otimismos.

E o homem, enquanto obstáculo à humanização das estruturas e dos sistemas, à verdadeira reforma, para manter o status quo sistémico do “lucro pelo lucro”, ao mesmo tempo que faz o discurso da fala mansa da solidariedade e da repartição equânime dos sacrifícios, empreende várias medidas de descarte, que o Papa especifica: o descarte das crianças, como o indicam as taxas de natalidade na Europa; e o descarte dos idosos. E chega ao ponto de afirmar que, quando necessitam deles, remobilizam-nos para o trabalho, mesmo que estejam jubilados/reformados. Porém, na ancianidade, descartam-nos, recorrendo a situações de eutanásia, oculta em muitos países. E, ainda para mais, negoceia-se escandalosamente com lares de idosos, saúde e funeral.

Mas o descarte estende-se aos jovens, o que o Papa considera “gravíssimo”. E de cor lança dados sobre a desocupação juvenil: 40%, em Itália; 50%, em Espanha (mas, na Andaluzia e Sul de Espanha, 60%). E refere que este sistema económico desumano produz a geração jovem de nem-nem, isto é, de jovens que nem estudam nem trabalham. E assim se descarta toda uma geração.

Este é um quadro traçado por um Pontífice que diz não estar suficientemente informado, que mal teve tempo de rezar o Pai Nosso nos últimos dias e que não entende nada de confiança e desconfiança na e da Europa ou de vantagens e desvantagens da saída do Euro. Que diria se tivesse tempo, papéis e o conhecimento que talvez desejasse.

Mas a afirmação referenciada em epígrafe aplica-se a mais outros campos.

É o “eu” do homem pecador que impede a reforma diária da Igreja (como diziam os antigos Padres da Igreja, Ecclesia semprer reformanda est – a Igreja deve reformar-se sempre) e a sua purificação pertinente. E, como apostava Frei Bartolomeu dos Mártires, também os cardeais! Ficou célebre a sua sentença: eminemtissimi cardinales indigent eminentissima reformatione.

Por isso, em termos de reforma na postura, ao mesmo tempo que se faz uma opção de Igreja preferencial pelos pobres e se preconiza uma Igreja pobre e serva, surgem as contradições com a mensagem, destacando-se as que vieram para as pantalhas da comunicação social: a alegada festa opípara no dia das canonizações de João XXIII e João Paulo II e as questões económicas protagonizadas pelo cardeal Bertone, atualmente sob estudo. O Papa refere a advertência do Mestre sobre a inevitabilidade da existência dos escândalos. Todavia, evoca o trabalho levado a cabo na reformulação da missão e estratégia do IOR, acentuando que foram encerradas quase dois milhares de contas tituladas por pessoas e entidades que não tinham direito a elas, bem como o esforço de reordenamento das finanças vaticanas através da criação e entrada em funcionamento da Secretaria de Economia, que levará por diante as reformas aconselhadas pelas comissões de estudo das finanças. Mesmo assim, Francisco alerta para a necessidade de atenção à continuidade das reformas e à nossa condição de pecadores e de pessoas débeis.

Sobre a necessidade de purificação da Igreja, a dificuldade é a mesma – a condição de pecadores e de débeis dos homens da Igreja. Todavia, o fenómeno gravíssimo do abuso sexual de menores constitui por parte de clérigos, segundo o Papa, uma traição, que ele carateriza:

Atraiçoa o corpo do Senhor porque estes sacerdotes que devem conduzir este menino, esta menina, este rapaz, esta rapariga à santidade, e este menino e esta menina confiam. E estes sacerdotes, em vez de os encaminharem à santidade, abusam. E isto é gravíssimo. É como… Far-vos-ei uma comparação: é como uma missa negra, por exemplo: tu tens que levá-lo (ao menino) à santidade e leva-lo a um problema que vai durar toda a vida.

Assegura o Papa que, nestas coisas, não há “filhos de papá”. Todos têm de ser punidos – abusadores e encobridores – há, pois, vários casos sob investigação e deve prestar-se toda a colaboração às autoridades civis. Não deixa de sublinhar que se trata de um crime hediondo existente em muitos lugares, mas que lhe interessa sobremodo o que se passa em Igreja.

É também o homem manipulado pelo seu egotismo, pelos interesses, que se tem tornado o grande obstáculo à paz, à paz duradoura e também em Jerusalém. A isto, Francisco diz:

A Igreja Católica já estabeleceu a sua posição do ponto de vista religioso: a cidade da paz, das três religiões. Porém, as medidas concretas de paz devem resultar de negociação […] Creio que se deve negociar com honestidade, fraternidade e muita confiança. Necessita-se de valentia para isto e eu rezo muito para que estes dirigentes tenham a valentia de percorrer o caminho da paz.

Provavelmente será o ego histórico de homens que prefere a observância das regras burocráticas e rubricistas ou a multiplicação das comunidades sem a celebração eucarística a atender ao essencial e a, por exemplo, colocar com franqueza as cartas na mesa da discussão sobre a obrigatoriedade do celibato eclesiástico como condição de ingresso no sacerdócio na Igreja Latina. Se, como todos referem, se trata de questão disciplinar (e não dogmática), estude-se a sério e passem-se das palavras aos atos, evidentemente sem deixar de salientar as vantagens teológicas e espirituais da opção também por sacerdócio celibatário, tal como em Igreja há, tem havido e creio continuar a haver a abundância das pessoas (homens e mulheres) consagradas na observância dos valores evangélicos da pobreza, obediência e castidade

Evidentemente que o obstáculo à reforma contínua da Igreja e do Estado será sempre um ou mais “eus”.

2014.05.27
Louro de Carvalho

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