Nas religiões, oferece-se sacrifícios à divindade - frutos, comida, animais, seres humanos -, para aplacá-la, agradecer, expiar os pecados, atrair bênçãos. A refeição sacrificial cultual criava relações de comunidade dos participantes com a divindade e entre si. Mas desgraçados dos seres humanos que foram oferecidos em sacrifício! Teria sido melhor não terem conhecido a religião. E que Deus seria esse que precisasse dos sacrifícios, sobretudo quando isso implicava a morte de homens ou mulheres?
A Bíblia, concretamente na sua linha profética, verberou os sacrifícios. Oseias põe na boca de Deus estas palavras: "Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios, o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos." E Amós: "Eu conheço as vossas maldades e a enormidade dos vossos pecados. Sois opressores do justo, aceitais subornos e violais o direito dos pobres no tribunal. Eu detesto e rejeito as vossas festas. Se me ofereceis holocaustos, não os aceito nem ponho os meus olhos nos sacrifícios das vossas vítimas gordas. Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca." E o profeta Isaías escreve: "De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas? - diz o Senhor. Estou farto de holocaustos de carneiros, de gorduras de bezerros. Não me agrada o sangue de vitelos, de cordeiros nem de bodes. Quando me viestes prestar culto, quem reclamou de vós semelhantes dons, ao pisardes o meu santuário? Não me ofereçais mais dons inúteis. Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas."
Jesus retomou a palavra profética de Oseias: "Ide aprender, diz o Senhor, o que significa: 'Prefiro a misericórdia ao sacrifício'." Ele enfrentou profeticamente a casta sacerdotal e expulsou os vendilhões do Templo, tendo sido este acontecimento determinante para a sua condenação à morte na cruz, na sequência de uma coligação internacional - Jerusalém e Roma -, com interesses sacerdotais, económicos e políticos ameaçados.
Afinal, um Deus que precisasse de sacrifícios era um Deus pior do que os seres humanos, quando vivem uma humanidade boa e feliz. Que pai ou mãe quer que os filhos andem de joelhos ou de rastos diante deles e lhes ofereçam sacrifícios?
O sofrimento pelo sofrimento é inútil e deve-se combatê-lo, bem como às religiões doloristas que pregam o sofrimento como agradável a Deus e a via mais directa para o céu. Deus não precisa nem quer sacrifícios. Deus, que é amor, quer amor e justiça para todos, dando preferência aos marginalizados e aos pobres. Mas cá está. A prática do amor e da justiça, a contribuição real para uma sociedade boa e justa e mais feliz implicam capacidade de sacrificar-se. Agora, porém, é diferente: não se trata do sacrifício pelo sacrifício, mas das melhores causas da vida, que inevitavelmente exigem renúncia, entrega, doação. Aqui, o sacrifício surge em toda a sua dignidade, dita já no étimo latino: sacrum facere - tornar sagrado. Não há amor nem obra grande nem salvaguarda da humanidade na sua dignidade, sem a disposição para sacrificar-se pelo melhor. Quem ousa então ir até ao fim, superando os obstáculos do egoísmo e da preguiça e da mesquinhez e da opressão e entregando-se à realização da humanidade de todos os homens, faz algo de sagrado, torna o mundo humano e sagrado.
Anselmo Borges, in DN
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